Roberto Martínez não era muito bom de pés e por isso aprendeu a usar a cabeça. Quem o diz é ele mesmo, o espanhol que já pensava como treinador quando ainda jogava, teve em Johan Cruyff um «pai» em mais do que um sentido, fez carreira em Inglaterra, deixou marca na Bélgica e é o novo selecionador de Portugal.

«Não era rápido e talvez não fosse suficientemente forte para ganhar duelos, por isso tinha de usar o cérebro. Tive de pensar como treinador muito cedo para tentar ajudar a equipa ou convencer o treinador a pôr-me em campo», contou Martínez, numa reportagem da BBC que acompanhou de perto o seu trabalho no início de 2021, na preparação para o Euro 2020. Por essa altura, a Bélgica atingira o ponto mais alto da sua passagem de seis anos pela seleção. Tinha sido terceira no Mundial 2018 e estava na frente do ranking da FIFA, uma liderança que se prolongou por três anos.

No Euro 2020, Roberto Martínez cruzou-se com Portugal, pela única vez até hoje. A 27 de junho comandou a partir do banco a Bélgica na vitória por 1-0 nos oitavos de final que mandou a seleção nacional, então campeã em título, para casa. Esse duelo em Sevilha foi também o primeiro jogo de Martínez em Espanha em 26 anos.

Tinha passado muito tempo desde que o agora selecionador nacional deixou o seu país, para construir uma carreira no futebol inglês e na longa passagem pela Bélgica que o distinguiu pelas ideias e pela abordagem metódica e transversal ao jogo, ainda que sem se ter traduzido em muitos títulos.

Promessas ao pai cumpridas

Martínez nasceu na Catalunha e viveu futebol desde sempre ao lado do pai, jogador e treinador amador, que Roberto começou a acompanhar aos treinos desde os dois anos de idade. «Nasci com a ideia de viver a vida através do futebol. O meu pai era muito apaixonado pelo jogo e vivíamos através do futebol», contou à BBC. Ainda adolescente, deu o salto para o Saragoça. «Saí de casa aos 16 anos para assinar o primeiro contrato profissional com o Saragoça, a duas horas de distância. Foi talvez a maior mudança da minha vida.» Mas ouviu os conselhos do pai, que lhe dizia para não se deslumbrar. Tirou um curso de fisioterapia e manteve uma vida regrada. «Prometi-lhe que continuaria a estudar e que não ia beber e cumpri ambas as promessas», revelou na autobiografia que publicou em 2008, Kicking Every Ball. Mais tarde, em Manchester, ainda fez uma pós-graduação em gestão.

Martínez chegou a sénior no Saragoça, mas não se afirmou, andou pela equipa de reservas e voltou ao Balaguer, na sua Lérida natal, onde dinamizou uma escola de futebol, uma forma de realizar trabalho comunitário em alternativa ao serviço militar e também a sua primeira experiência como treinador, com apenas 22 anos. Foi então que apareceu a oportunidade de ir para Inglaterra, a outra grande mudança que iria definir para sempre o seu futuro.

Dave Whelan, que tinha comprado o Wigan, mandou um emissário a Espanha para procurar jogadores e ele voltou com três. Além de Roberto Martínez, viajaram Jesus Seba, que mais tarde viria a jogar no Belenenses e trabalhou até aqui no departamento de scouting da seleção belga, e Isidro Díaz, também ele com um futuro que passaria por Portugal, com uma longa ligação ao Desp. Chaves.

A aventura dos «Three Amigos» em Inglaterra

Mas naquele tempo, em 1995, eles eram três jovens espanhóis numa aventura insólita no quarto escalão do futebol inglês. Os primeiros estrangeiros no clube, sem saberem uma palavra de inglês. «Foi como se nos dessem a oportunidade de ir à Lua», recordou Martínez em 2020, ao canal do jornal As, quando os três se juntaram para recordar aquele tempo e a forma como foram adotados com carinho pelos adeptos do Wigan. Mesmo com alguns erros geográficos pelo meio. Um dia, depois de jogarem para a Taça de Inglaterra, um assessor de imprensa apareceu com três «sombreros». Pensou que os chapéus «eram espanhóis e que seria uma boa ideia», ri-se Martínez. Seja como for, a associação pegou e eles rapidamente ganharam a alcunha, inspirada numa comédia popular nos anos 80: «Los Three Amigos.»

Martínez recorda com carinho o entusiasmo dos adeptos, mas também o choque com os velhos conceitos do futebol inglês que ainda persistiam, sobretudo nas divisões inferiores: «Não podia haver maior contraste: três futebolistas que vinham da formação do Saragoça, que era toda à volta de posse, tentar entender os espaços, defender a bola, e fomos dar a um sítio onde a primeira coisa que se fazia era passar a bola, chegar o mais rápido possível à área, lutar e ganhar metros no campo… É a influência do râguebi, futebol de percentagem.»

O irmão que Cruyff não deu a Jordi

A forma como absorveu essas diferenças de estilos definiria o perfil de treinador de Roberto Martínez, que cresceu sob a influência das ideias de Johan Cruyff. «Temos de ter um envolvimento original com o futebol e para mim isso aconteceu através de Johan Cruyff», contou ao Daily Mail. «Ele levou algo completamente diferente ao Barcelona. Não se tratava apenas de sistemas, eram vantagens numéricas, defender com a bola, ver o que podemos fazer quando temos a posse. Ele trouxe uma forma de pensar que afetou toda a gente no futebol – os que gostavam dessa forma de jogar e os que a tinham de contrariar.»

A ligação a Cruyff vai bem para além da influência futebolística. Martínez tornou-se grande amigo de Jordi, o filho de Johan. Cruzaram-se ainda na formação, um com a camisola do Saragoça e outro do Barcelona, mas foi em Inglaterra que criaram laços para a vida, quando Jordi estava no Manchester United e Roberto no Wigan. Tornou-se parte da família. «Em Inglaterra, Jordi encontrou o irmão que Danny e eu não lhe pudemos dar», escreveu Johan Cruyff na sua autobiografia. «Porque foi assim que acabámos por considerar Roberto Martínez. Naquela época, o Jordi jogava no Manchester United e Roberto no Wigan Athletic. Tornaram-se amigos íntimos e eu nunca excluí que algum dia jogassem juntos. Vias que o Roberto era um tipo estupendo. Um homem aberto e sincero.»

A transição para treinador

Martínez podia não ser muito bom, mas destacou-se rapidamente no Wigan. No final da primeira época, com 13 golos marcados, integrou a equipa ideal da Division Three. Ao fim de seis temporadas, deixou o Wigan, mas não o futebol britânico. Esteve na Escócia, no Motherwell, onde conheceu a sua esposa, depois voltou a Inglaterra, para jogar no Walsall e a seguir no Swansea.

Foi no clube galês que fez a transição para o banco. Primeiro ainda tentou ser jogador-treinador, mas depressa desistiu. «Estava-me a enganar», contou à BBC. Tinha 33 anos e nessa primeira experiência no banco foi campeão da League One e subiu ao Championship. A ligação terminou ao fim de três épocas, quando o Wigan voltou a bater-lhe à porta. Agora o clube tinha ascendido à Premier League e Roberto Martínez não desperdiçou a oportunidade de jogar no grande palco, mesmo que a mudança tenha sido mal recebida pelos adeptos do Swansea. Chamaram-lhe «Judas».

A vitória na Taça de Inglaterra

No Wigan teve quatro épocas irregulares, a lutar para não descer, que terminaram com uma história de sonho. A 11 de maio de 2013, o Wigan venceu o campeão Manchester City em Wembley e conquistou a única Taça de Inglaterra da sua história, que é também até hoje o principal troféu conquistado por Roberto Martínez. Três dias depois, o Wigan descia de divisão. Mas por essa altura Roberto Martínez já tinha ganhado estatuto para outros patamares.

Na época anterior tinha sido hipótese para o Liverpool, mas no verão de 2013 o seu destino foi o Everton, que assumiu depois da saída de David Moyes para o Manchester United. O quinto lugar na primeira temporada, com recorde de pontos para o clube, foi um bom cartão de apresentação, mas não teve continuidade e acabou por sair ainda antes do final da terceira época, apesar de ter chegado às meias-finais da Taça de Inglaterra e da Taça da Liga.

Os tempos dourados na Bélgica

Não ficou muito tempo no desemprego. Logo em agosto de 2016 aproveitou a oportunidade que surgiu de treinar a Bélgica, sucedendo a Marc Wilmots. «Ser selecionador nunca esteve nos meus planos. Estaria talvez nas etapas finais da minha carreira, quando talvez se precise de abrandar um pouco e já não ter o trabalho diário. Mas a Bélgica era a única seleção pela qual eu me interessaria», disse à BBC.

Começou por conduzir os Diabos Vermelhos num apuramento quase imaculado para o Mundial 2018, com nove vitórias e um empate. Na Rússia, a Bélgica venceu todos os jogos da fase de grupos, depois eliminou o Japão e nos quartos de final venceu o Brasil (2-1), no jogo icónico de uma geração, a enorme concentração de talento a que chamaram geração de ouro. Seguiu-se a meia-final, perdida para a França. O terceiro lugar chegou com a vitória sobre a Inglaterra.

Dados, contexto, observação e todos os jogos na Bélgica gravados

No final de 2018 a Bélgica subia à liderança do ranking da FIFA, que manteve até ao início de 2022, graças a um percurso assente em enorme consistência de resultados nas campanhas de qualificação para as fases finais do Euro 2020 e do Mundial 2022, sem qualquer derrota. Depois do Mundial 2018, Martínez passou a acumular o trabalho de selecionador com o cargo de diretor técnico da Bélgica, assumindo um papel transversal a todo o futebol belga e envolvendo-se também na construção da «cidade desportiva» da Federação belga em Tubize.

Esse trabalho é detalhado na reportagem da BBC, que mostra Roberto Martínez a explicar o conceito de «alta perfomance» que pôs em prática. Antes de mais uma extensiva análise de dados. «Precisamos sempre de dados, são essenciais. Mas se noutros desportos talvez ele definam decisões, no futebol suportam-nas. É essencial ter dados no contexto perfeito. O futebol é um jogo em que se marca pouco. Portanto, dados sem contexto não são nada», diz. Depois, na observação presencial de muitos jogos. «É a melhor parte do trabalho, ir ver futebol», garante: «Se queremos ver o ser humano que joga futebol, além do futebolista, temos que estar no estádio.» E ainda na explicação de um projeto a que chamou Wide Angle, e que consiste no registo de todo o futebol que se joga na Bélgica: «Todos os jogos do futebol belga são gravados: profissional, amador, formação, feminino.»

«É para aí que vai o jogo moderno. Tudo o que fazemos tem de ter o olho e a experiência à moda antiga, mas precisa de ser usado através da tecnologia e do apoio que a tecnologia nos dá hoje em dia», explica, ele que logo na apresentação como selecionador nacional deu indicação de como já começou esse trabalho de análise com Portugal, quando falou em 54 jogadores com menos de 28 anos a atuar nas grandes Ligas.

Essa reportagem mostra também como o trabalho se estendeu aos jogadores, que puderam aproveitar as concentrações da seleção para frequentar a formação de treinador.

Legado «para os próximos 20 anos» 

A Bélgica chegou ao Euro 2020 com enormes expectativas. Depois de afastar Portugal, caiu frente à futura campeã Itália, um resultado que soube a pouco, numa equipa que evidenciava já algum desgaste de ideias e se tornava mais calculista. «Estamos a mudar a nossa forma de jogar, muito por culpa do que aconteceu no Mundial da Rússia», disse Roberto Martínez após a vitória sobre Portugal.

Depois, apesar da boa campanha de qualificação, no Qatar, era também uma seleção já a acusar a idade e alguns sinais adicionais de desgaste, expressos nas palavras de Kevin De Bruyne, quando depois da vitória sobre o Canadá na primeira jornada do Mundial gelou expectativas, dizendo que a Bélgica não tinha hipóteses de ser campeã do mundo: «Já somos demasiado velhos.» A Bélgica falhou mesmo a toda a linha, afastada na primeira fase, no meio de notícias sobre problemas no balneário, prontamente desmentidas por Martínez, num dos poucos momentos em que se mostrou publicamente irritado, ele que se distingue habitualmente pela abordagem racional e pelo tom diplomático.

O contrato de Martínez terminava no final deste ano e logo após o nulo com a Croácia que ditou a eliminação o treinador anunciou que estava de saída. A decisão tinha sido comunicada na véspera aos jogadores, contou mais tarde. Foi também na véspera do jogo com a Croácia que Martínez defendeu em conferência de imprensa o trabalho que fez com a Bélgica e o legado da seleção que orientou ao longo de seis anos. «Eles ganharam o bronze no Mundial 2018, foram número 1 do ranking por quatro anos e 21 deles já têm a licença A como treinadores. Vão continuar a influenciar o futebol belga nos próximos 20 anos. Esta é a geração de ouro e este é o seu legado.»