Era impossível não dar por Quim Ferraz em campo. Os seus quase dois metros – 196 centímetros, em bom rigor – faziam dele um ponta-de-lança inconfundível e extremamente difícil de marcar. Tinha instinto, garra e uma tendência diletante de fazer golos nos jogos certos.

Foi assim, dizem os registos, que a 12 de dezembro de 2001 silenciou o Estádio da Luz. Quim, à época ponta-de-lança do Marítimo, foi lançado por Nelo Vingada aos 73 minutos e inaugurou o marcador já no prolongamento. Zahovic ainda empatou e levou o jogo para os Barreiros, onde o nulo garantiu a queda do Benfica e a qualificação dos madeirenses para a ronda seguinte da Taça de Portugal.

Quim marcou na Luz e eliminou o Benfica da Taça; Quim marcou a Jorge Jesus e impôs uma derrota ao treinador. Sim, falta falar desta segunda curiosidade. Mais de quatro anos antes desse instante de glória em Lisboa, em abril de 1997, o bom gigante das áreas fez um golo ao Felgueiras de JJ. 2-0 para o Paços, o clube onde Quim atuava por empréstimo do Belenenses.

Mas, por onde anda Quim Ferraz, o homem que pode contar aos filhos e aos netos que abateu o Benfica na Taça de Portugal e derrotou Jorge Jesus num jogo do campeonato?

Bem, como o mundo do futebol tem uma lógica muito própria e um assombro intrincado, Quim voltou ao sítio onde tudo começou para si: integra a equipa técnica do União de Paredes e reencontra duas vítimas do seu passado, o Benfica e Jorge Jesus.

Motivos mais do que suficientes para colocar a conversa em dia com o Maisfutebol. A começar, naturalmente, por aquela noite de 2001, há quase 19 anos. Como está a memória de Quim, um nome grande – em todos os sentidos – na briosa história do Paredes?

«12 de dezembro de 2001? Penso que estava a jogar contra o Benfica para a Taça de Portugal. É isso? Grande jogo. Sim, as pessoas de Paredes sabem disso. Marquei na Luz e depois eliminámos o Benfica nos Barreiros. Ainda hoje me falam desse golo por aqui», conta o agora treinador-adjunto do adversário das águias.

Quim jogou cinco anos na I Liga – duas épocas no Belenenses e três no Marítimo -, fez 12 golos no escalão maior e vários jogos no currículo contra os ‘grandes’ do nosso país. Dificilmente os jogadores do Paredes poderiam encontrar um professor mais habilitado.

«Fui colega de equipa de alguns dos meus atuais atletas e eles conhecem o meu percurso. Em jeito de brincadeira até lhes costumo dizer isto: ‘se precisarem que vos ensine a marcar golos ao Benfica, posso ensinar-vos’.»

As probabilidades de ser ‘tomba gigantes’ são diminutas – em Paredes fala-se em cinco por cento -, mas no balneário unionista não há filantropos, nem meninos de coro. Quim sabe do que fala quando sublinha a «qualidade» do seu grupo de trabalho, uma das boas surpresas na Série C do Campeonato de Portugal.

«Uma das características deste Paredes é o aproveitamento da formação. 70/80 por cento do plantel passou pelas nossas camadas jovens. O mister Eurico [Couto] tem feito um excelente trabalho e o que eu lhes digo é que na Taça de Portugal tudo pode acontecer.»

«O Paredes está numa fase de reestruturação e afirmação»

Na altura de se despedir dos relvados, em 2014 e já com 40 anos, Quim Ferraz olhava para o futebol como uma atividade secundária. Licenciara-se em Educação Física, tirara dois Mestrados, levara a sua vida para os estudos e a investigação.

Só o amor pelo União de Paredes, e a amizade pessoal com o presidente Pedro Silva, seriam capazes de o devolver aos balneários. Assim foi.

«Afastei-me do futebol durante três anos, comecei a dar aulas e fiquei sem grande disponibilidade. Em 2017 voltei ao clube, a convite do atual presidente, para ser diretor desportivo. Subimos de divisão logo no primeiro ano, toda a estrutura fez um trabalho fantástico», explica o antigo avançado.

«Estive um ano e meio no cargo, saí e voltei este ano para integrar a equipa técnica do treinador Eurico Couto. O Paredes está numa fase de reestruturação e afirmação. Depois de uma fase complicada, esta direção entrou e as coisas melhoraram. Conseguimos subir aos nacionais em 2018, o que foi importante para motivar a própria cidade, e estamos numa fase estável. O Paredes é bem gerido, apesar da escassez de recursos financeiros, mas este elenco tem conseguido fazer o clube crescer.»

Quim, à direita, com a camisola do Dundee United

O tempo agarra-nos a todos, não nos deixa para trás. É veloz e contumaz. Parece ter sido ontem, mas a verdade é que já passaram 26 anos desde que o prometedor Quim se transferiu do Paredes para o Sp. Lamego, uma escala breve antes de chegar à I Divisão e ao Belenenses.

«Cheguei lá com 20 anos, mas nessa época não joguei muito. Aprendi, sobretudo aprendi. Tive uma pubalgia e isso prejudicou-me. O plantel era riquíssimo e ficámos no sexto lugar.»

Quim recorda os nomes de « Fernando Mendes, Lula, Neves, Tulipa» e de um plantel de luxo às ordens de João Alves. «Fizemos uma temporada espetacular. Depois fiz uma boa época na II Liga, emprestado ao Paços, voltei ao Belenenses e estive na subida de 1998/99. Foi nessa altura que aceitei o convite do Dundee United na Escócia.»

Cinco meses na China: «Já era interessante financeiramente»

Homem de Paredes, cidadão do mundo, Quim Ferraz passou uma temporada no histórico Dundee United, na Escócia. Marcou oito golos, jogou bastante, mas não aguentou «o frio e as condições de treino limitadas no clube».

O Marítimo europeu desafiou-o e Quim aceitou. Ficou três anos na Madeira. «No primeiro ano ajudei o Marítimo a chegar à final da Taça de Portugal e no segundo joguei a Taça UEFA. Ganhámos ao Leeds 1-0 em casa, por exemplo. Fomos eliminados em Inglaterra.»

«Em 2004 subi com o Penafiel, não recebi nenhum convite bom e acabei por ir fazer cinco meses à China», recorda o longilíneo dianteiro. «Já era financeiramente interessante, mas nada o que é hoje. Valia a pena. Fiquei meio ano, porque não me adaptei bem à cultura, aos horários, enfim. Estava sem a família e achei melhor voltar a Portugal. Na altura para o Sp. Espinho.»

Quim escolhe o União de Paredes como «o clube da vida», essencialmente pela ligação emocional. Começou lá, acabou lá e prossegue lá a ligação ao futebol. O próximo desafio é contra o Benfica, provavelmente o mais difícil de sempre para Quim.

Mas este homem, um guerreiro das áreas, já eliminou o Benfica da taça e marcou um golo a Jorge Jesus. O plantel do Paredes não podia ter um exemplo melhor em casa.