De Vildemoinhos para o mundo. Do Lusitano para o Sporting. Do fugaz insucesso no futebol ao topo olímpico no atletismo. Aos 71 anos, Carlos Lopes, figura incontornável do desporto português, vê os seus dois amores em confronto, na quarta eliminatória da Taça de Portugal. Assistiu à tarde de glória ante o Nacional, nos Trambelos. Foi em representação do clube da sua terra ao sorteio seguinte. E saiu de coração dividido. Tal como estará a partir das 15h00 de sábado, no Estádio do Fontelo, em Viseu.
É mais uma terça-feira em Vildemoinhos. Final da manhã, sol entre nuvens. A cuidadora do estádio trata da roupa dos atletas. Um senhor escoa a água entre o relvado dos Trambelos. Esta é a casa do Lusitano que, no entanto, não vai receber o Sporting. Isso será a escassos quilómetros, no Estádio do Fontelo.
Daí a instantes, eis Carlos Lopes. É mais uma visita à terra natal. Com contornos especiais, antes do Lusitano-Sporting. Partira manhã cedo de Torres Vedras, para pouco mais de duas horas e meia e 250 quilómetros de viagem até à casa que o viu nascer.
Crescer, podia ter sido para o futebol. Mas diz que o achavam «muito franzino» para a bola. Sucedeu no atletismo. Portugal agradece.
«O Lusitano é um clube que me fez crescer. Futebol, infelizmente, nunca aconteceu. Jogava com os jogadores do Lusitano no largo da igreja. Como era baixo e pesava 48 quilos, se me dessem um sopro, eu fugia da bola. O futebol era, para mim, um sonho». Disso não passou.
«Por brincadeira, comecei no atletismo», atira, em conversa, na bancada principal do Estádio dos Trambelos.
Antes do vasto palmarés nacional e internacional, Carlos Lopes cruzou-se com as corridas, pela primeira vez, à noite. Foi após uma saída de jovens da terra. Na desportiva, ganhou. «Por casualidade ou não, cheguei primeiro. No outro dia juntámo-nos e lá fizemos uma equipa. Começámos a treinar e fui à primeira São Silvestre, de Viseu. A partir daqui, comecei a ganhar as provas todas». O resto, é um currículo que fala por si. Surgiu a cobiça de vários clubes e aceitou o Sporting, «amor desde os sete anos».
Por isto – e muito mais – Lusitano e Sporting são os clubes do coração.
«Posso torcer pelos dois, tenho essa vantagem»
Carlos Lopes será atento adepto na festa da Taça de sábado. Neste regresso aos Trambelos, revê as bancadas, observa a roupa estendida a secar. Dá uma volta pelo relvado. É a pureza do cantinho do Lusitano. No meio de recordações, a pergunta que se impõe sobre o jogo. Por quem vai torcer?
«Eu posso torcer pelos dois, tenho essa vantagem de ser dos dois. Agora, também reconheço que o Sporting tem uma dimensão que o Lusitano não tem. O Lusitano tem, possivelmente, dez por cento de hipóteses de passar. O Sporting quer ser campeão e ganhar a Taça», compara.
Na bancada, onde fará «questão de estar», o antigo atleta não sabe se vai «festejar». Diz-se «pessoa comedida». Com noção de respeito entre os adversários. Mas sugere o alento que pode dar a cada lado.
Para os do Lusitano, «fé em Deus e chuto para a baliza». Para os leões, o evitar a surpresa, na assunção de «equipa de dimensão europeia».
«Vai ser uma tarde desportiva excelente para todas as pessoas de Vildemoinhos, o amor que a gente tem pelo Lusitano. O resultado é secundário», atira, reconhecendo que o jogo nos Trambelos traria «mais festa da Taça», mas que há «outros valores necessários» na balança.
Gerações no Sporting e coragem pelo Lusitano
Atleta do Sporting de 1967 a 1985, Carlos Lopes marcou «uma geração». O próprio defende. Afinal, tem um ouro e uma prata nos Jogos Olímpicos, três medalhas de ouro em Mundiais de corta-mato. Recordes atrás de recordes. Uma vasta lista.
Fala-nos do atletismo ao futebol e argumenta que a «dimensão do Sporting» não corresponde às conquistas recentes.
«Há momentos que ficam na história. Os dois campeonatos, poucos. O Sporting teve equipas extraordinárias e não chegava a ser campeão. Ninguém compreendia. Hoje a gente começa a perceber alguma coisa, mas não está tudo dito. Nunca ter sido campeão mais que uma vez seguida, fere a nossa alma», frisa.
Mas até perceber essa realidade chegar à capital, a terra que o viu evoluir teve um ajudante de ourivesaria. Ou um trabalhador na mesma serralharia onde o pai laborava. Por isso, e pela crescente história com início no Lusitano, Carlos Lopes defende os seus genes e pede «um bocadinho de coragem» para apostar no crescimento do clube viseense.
«Hoje em dia, funciona tudo com dinheiro. Isto ainda se trabalha com amor e carinho pelo clube. E a dimensão do clube só pode crescer quando houver dinâmica e capacidade para promover o clube cada vez mais. Penso que o Lusitano, nos últimos sete anos, tem crescido imenso. Acho que merecia apoio, carinho de todos os agentes desportivos e mesmo de alguns empresários que têm capacidade financeira», alerta.
Palavra terrena.
Depois das memórias de Lusitano e Sporting em pleno Estádio dos Trambelos, Carlos Lopes viaja pelas entranhas locais. Pelo coração de Vildemoinhos, com o Maisfutebol e a TVI.
Desce a Rua Carmindo Moreira com nostalgia, dá com o jardim do Largo Capitão Almeida Martins, palco de tempos idos. Recordações imediatas de infância, no fundo. Foi ali que tudo – ou quase tudo – começou para Carlos Lopes e tantos outros.
«Isto era o adro em que havia sonhos tremendos de todos os jovens. Éramos 22 rapazinhos com a mesma idade. Mas foi também neste adro, tudo terra batida, não tinha jardins, que até uma pista se fez», recorda. Era um percurso de 200 metros. «Eu, com 13 anos, era o único da minha idade que tinha resistência para isso. Foi aqui que comecei. Ia a todas, queria era fazer desporto», lembra.
Foi ali também, no largo colado à igreja, que treinaram e cresceram os futebolistas de então do Lusitano. Alguns deles cruzam-se com Carlos Lopes nesta caminhada por Vildemoinhos.
«Estou aqui a ver pessoas do meu tempo», nutre, com saudade. Sai do largo e cumprimenta alguns deles, no caminho para o «Arraial», coração das grandes festas do 24 de junho, feitas há 366 anos de forma consecutiva.
«Era o largo dos sonhos de todos os homens de Vildemoinhos. Tenho 71 anos, já passaram uns aninhos valentes, sai daqui há 52. As coisas antigas, a gente recorda com facilidade. Foram momentos vividos com muita gente. Solteiros, casados, todos se juntavam. Era uma família. Também havia um “pontapézinho” numa canela de um ou outro. Mas era a forma de a gente viver e conviver. Era assim que nos tornávamos homens. Eu ganhei muito com isso», considera.
Do irmão sportinguista ao primo Carlos Lopes
Em pleno início de tarde, a meio da semana, Vildemoinhos vê algum movimento no largo principal, nas traseiras da igreja. Entre os que passam, natural apetite por rever Carlos Lopes, que dá com o irmão António Orlando, metros adiante no seu carro, a poucos metros de casa.
António sai da viatura, diz-se sportinguista, mas gosta do Lusitano. Cumprimenta o irmão Carlos e aborda o jogo que todos esperam. Não sem antes lembrar: «Antigamente, quando era mais novo, ia muitas vezes a Lisboa ter com ele para ver o Sporting. Em princípio, o Sporting vai ganhar. Gostava que ganhassem os dois, mas só pode ganhar um», lamenta.
Pelo meio de antigos colegas, há ainda o primo… Carlos Lopes. O ex-atleta vê o seu homónimo, cumprimenta-o e despede-se, antes de sair de Vildemoinhos. «Fico por aqui», atira o primo, esperando vitória do Lusitano, apesar de ser do Sporting. Só lhe «deixa pena» não ver o jogo nos Trambelos», pois seria «muito pior» para o leão.
O ouro revisitado
Foi ali, naquele largo das festas de Nossa Senhora dos Milagres e do São João, que Carlos Lopes foi homenageado tempos após o ouro olímpico de 1984. No mesmo local, perante os conterrâneos, fala de «um dia memorável», no qual se regista uma fotografia que perdura no tempo.
«Penso que todas as pessoas de Vildemoinhos estiveram presentes. Uma coisa jamais vista, com o engenheiro Fernando, um dos responsáveis pela Visabeira [ndr: multinacional de telecomunicações e construção], a dar a volta à cidade com o seu descapotável. Ainda me recordo de qualquer coisa parecida: “É, é, é, Carlos Lopes, assim é que é”». São coisas que fazem parte da história, como cidadão e atleta», ilustra.
Dentro de poucas horas, Carlos Lopes volta a Vildemoinhos. Afinal, há um jogo que junta os clubes do coração junto às suas raízes. Sempre com a certeza de que «não pode perder» as «memórias de juventude». As que do largo à pista, do estádio à família, o mantêm ligado a casa.
Por isso, é «normal» que, a mais ou menos dia, Carlos Lopes apareça por ali. Onde começou o que leva desta vida.
[artigo originalmente publicado às 23h54 de 22 de novembro]