1- Simplesmente imperdível a extensa entrevista de César Menotti ao «El Gráfico», onde, em 120 respostas, passa em revista as carreiras, de jogador e técnico, e as ideias com que construiu a sua visão do futebol.

O selecionador campeão do Mundo em 1978 tem 76 anos, já não treina há oito, mas continua a assumir com naturalidade o papel de personagem controversa, e incontornável, no debate ideológico do futebol atual. «Sei que me preparei para isto toda a vida. Para debater, dentro e fora do campo», diz a certa altura, rejeitando estar reformado.

Foi a partir de Menotti, um militante do Partido Comunista, que se acentuaram na Argentina os conceitos de «futebol de esquerda» - um jogo afirmativo, feito de posse e circulação, - e «futebol de direita» - especulativo, de aposta no erro alheio, tendo como símbolo Carlos Bilardo, ideólogo da seleção campeã em 1986.

Mas claro que, no futebol como na vida, as coisas nunca são tão lineares como parecem na teoria. Desde que o debate começou, há mais de 40 anos, não falta quem aponte as óbvias contradições do guru: o seu «futebol de esquerdas» venceu o Mundial de 1978 com apoio, decisivo e nada discreto, da ditadura militar argentina. E, diga-se também, com uma boa dose de violência e antijogo, em tudo contrários aos conceitos que foi apregoando.

Por outro lado, a seleção de Bilardo, em 1986, ficou na memória de todos pelo espaço de afirmação que permitiu a Maradona. Foi nesse contexto, indiscutivelmente conservador e burocrata, que El Pibe se tornou o maior ícone de liberdade e fantasia do futebol no século XX – esse mesmo Maradona que, oito anos antes, Menotti deixou fora da seleção, por não o achar suficientemente maduro para o combate de um Mundial.

Claro que Menotti convive bem com essas contradições, que há décadas lhe são atiradas à cara. É capaz de rir-se de si mesmo quando lhe perguntam se Maradona já lhe perdoou: «Diego não te perdoa nunca. Nem sequer te perdoa que o substituas num jogo. Uma vez tirei-o, creio que contra o Panamá, porque o estavam a matar a patadas. Ficou sem me falar durante 15 dias», conta.

Foi a partir do debate entre menottistas e bilardistas que uma discussão argentina alastrou e, com a intervenção decisiva de Johann Cruijff e outros herdeiros da escola holandesa, revolucionou o futebol espanhol e europeu. Pep Guardiola, que neste domingo completou 44 anos, é o herdeiro direto, e mais ilustre, desta linhagem de discussão, que tem ideias como prioridade, e resultados como consequência.

«A mim o que me irrita é ver uma equipa, uma seleção, perder a sua genética. Como um cão de caça, que fica quatro anos num apartamento e deixa de saber caçar», diz Menotti. Em tempos atribulados, globalizados e resultadistas por excelência, é bom lembrar que o futebol vive de memórias, afetos e raízes culturais. Sim, de ideologia, também, embora essa palavra venha sendo posta em fora de jogo há vários anos. Por muito contraditórios que sejam os seus gurus.



2- Os últimos minutos do Sporting-Rio Ave, neste domingo, foram a ilustração perfeita do fosso que separa, e sempre separou, os interesses de treinadores e espectadores. Quanto mais partido está um jogo, mais potencial de emoção ele tem e mais intenso se torna para quem o vê de fora. Já quem tem a obrigação de controlá-lo, a partir do banco, vê multiplicarem-se os cabelos brancos a cada perda de bola e a cada transição falhada. As palavras de Marco Silva não podiam ser mais claras a esse respeito.

Os treinadores procuram a ordem, e podem ser maravilhosas as várias manifestações que ela assume – seja no Barcelona de Guardiola, na pressão defensiva do Milan de Sacchi, ou nas transições ofensivas do Real Madrid, de Mourinho e Ancelotti. Mas é o caos, trazido pelos erros, pelo talento e pela fantasia, que dá ao jogo de futebol e a dimensão épica que sustenta uma paixão com 130 anos.

O caos organizado é o Santo Graal que cada treinador procura, à sua maneira. As suas convicções, nascidas da formação que teve e do contexto cultural, são a «genética» de que fala Menotti. É isso que permite aos melhores treinadores a definição de um caminho ordenado, por entre o maravilhoso caos que os desafia a cada novo jogo.