Kerri Strug é a menina nos braços de Bela Karolyi, o pé esquerdo imobilizado, dupla rotura de ligamentos no tornozelo, ao peito a medalha de ouro olímpica. 23 de julho de 1996 no Georgia Dome de Atlanta, vai fazer 20 anos, o dia da imagem que enterneceu a América e se tornou ícone dos Jogos Olímpicos.

Foto Mike Blake/Reuters

Kerri caiu mal no primeiro salto. Magoou o pé, a expressão de dor não deixava dúvidas. Mas Kerri era a última ginasta norte-americana em prova e havia mais um salto a fazer no último aparelho do concurso. Os Estados Unidos dependiam dela para ganhar o ouro olímpico por equipas que lhes fugia desde sempre para a agora já desmantelada União Soviética. A queda nos dois saltos anteriores de uma das favoritas, Dominique Moceanu, tinha baralhado as contas e reduzido a vantagem para a Rússia naquela reta final. Quando olhou para Bela Karolyi, a mensagem que o treinador lhe passou foi essa. Era preciso voltar a saltar. 

Ela voltou, correu, fez a chamada e o salto. Na chegada ao solo, assentou ambos os pés no chão por um breve instante, para logo de seguida levantar o pé esquerdo e, contorcendo-se de dores, cair de joelhos. Um silêncio de comoção e expectativa dominou o pavilhão, até se tornar numa explosão de alegria quando apareceu a nota no quadro eletrónico. 9.712, era ouro para os Estados Unidos.

Kerry teve de ser levada em braços para fora do tapete. Não quis que a transportassem de imediato para o hospital, onde era necessário avaliar melhor a gravidade da lesão, quis ficar com as companheiras para subir ao pódio. 

Ironia, naquele momento de tensão ninguém fez bem as contas e, face às últimas prestações medianas das atletas russas, nem teria sido necessário aquele segundo salto de Kerri para os Estados Unidos ganharem o ouro.

Mas ela quis fazê-lo. Era o seu momento.

Era a mais discreta das ginastas norte-americanas, uma seleção de estrelas a que chamaram as «Sete Magníficas» e em que a América depositava enorme expectativa nos «seus» Jogos Olímpicos, uma equipa tão valorizada que não ficou na aldeia olímpica, mas noutro local, protegida e longe das multidões. Kerri não tinha o «glamour» das companheiras, nem o seu currículo. Mas queria muito. «Isto são os Jogos Olímpicos, é aquilo com que sonhamos quando temos cinco anos. Não ia parar», disse na altura.

Era uma vitória desportiva, mas também pessoal. «Tinha finalmente reconhecimento. A medalha de ouro catapultou-me e mudou a trajetória da minha vida», disse, muitos anos mais tarde, numa entrevista ao «Huffington Post»: «Deu-me confiança para sair da minha concha e me tornar mais forte mentalmente.»

Kerry quis ser ginasta desde que se lembra e aos 13 anos convenceu os pais a deixarem-na mudar-se de Tucson, no Arizona, para Houston, no Texas, porque era lá que estava Bela Karolyi, o homem que chegou à América vindo do lado de lá da Cortina de Ferro. O treinador que orientou Nadia Comaneci no seu 10 perfeito nos Jogos Olímpicos de Montréal, em 1976, que treinou a seleção da Roménia quatro anos depois em Moscovo, que desertou em 1981 durante uma digressão e pediu asilo aos Estados Unidos, onde se fixou desde então.

Com Karolyi, Kerry foi a mais jovem atleta americana nos Jogos Olímpicos de Barcelona, tinha 14 anos. Ganhou o bronze por equipas com os Estados Unidos, mas não se qualificou para nenhuma final individual. Depois o treinador decidiu retirar-se. Ela teve outros técnicos, mas quando Karolyi voltou ao ativo, em 1995, voltou a trabalhar com ele. Os Estados Unidos preparavam uma grande equipa para os seus Jogos Olímpicos e ela fazia parte dela.

Depois daquele momento em Atlanta, Kerri tornou-se famosa, o rosto da narrativa perfeita para os Jogos Olímpicos americanos. Abriu noticiários na televisão, foi capa de jornais e revistas, convidada para uma audiência com o presidente Bill Clinton, apareceu em «talk shows», foi vedeta entre vedetas. Aqui, com os atores Bruce Willis e Demi Moore.

Quanto à carreira de Kerri, acabou em Atlanta. Ela tinha-se qualificado para duas finais, mas a lesão impediu-a de participar. Depois dos Jogos Olímpicos optou por ir para a universidade, formou-se em sociologia, hoje trabalha para o Departamento de Justiça norte-americano, no gabinete de prevenção de delinquência juvenil. Tem dois filhos, não abandonou completamente o hábito do desporto, já correu várias maratonas. E faz da sua história exemplo de vida para contar aos jovens que tenta inspirar todos os dias.

Por trás do heroísmo de Kerri há muito sofrimento, naquele momento e ao longo de toda uma carreira de ginasta de alta competição, sob a influência de um treinador como Bela Karolyi. O homem mais bem sucedido da história da ginástica fez muitas campeãs, mas os seus sucessos, bem como a sua atitude efusiva e entusiasta com as atletas em competição, têm um reverso de sombras: acusações de métodos ultra-rigorosos, controlo obsessivo sobre as atletas, crianças na maior parte das vezes, na linha dura de vários outros treinadores do antigo bloco de Leste. Dominique Moceanu, uma das «Sete Magníficas» de Atlanta, foi uma das antigas atletas de Karolyi que denunciou abusos verbais e físicos de Karolyi e da sua mulher, Márta.

Mas os defensores de Karloyi e Márta, que sucedeu ao marido como coordenadora da seleção norte-americana de ginástica, onde está até hoje, argumentam com a velha lógica de que os fins justificam os meios. A opinião da própria Kerri Strug é uma variação desta máxima.

«Sinto uma enorme dívida para com Karolyi. Escolhi treinar com ele. Não é o meu melhor amigo ou uma figura paternal. Ele está lá para fazer de mim a melhor ginasta que eu conseguir ser e empurra-nos para fora da zona de conforto a cada dia», disse Strug numa entrevista à Reuters, em 2012.

«Em termos práticos eu gostava dele? Nem por isso», analisa, friamente: «Mas quando parava para pensar adorava o facto de saber que ele estava a fazer de mim a melhor ginasta que eu podia ser.»