A época 2023/24 traz com ela algumas alterações na arbitragem. Uma delas, que não afeta o jogo propriamente dito, mas pode ajudar a compreendê-lo melhor visto de fora, é a divulgação, uma vez por mês, das comunicações entre árbitros e videoárbitros de todos os lances de jogos da Liga submetidos a análise na Cidade do Futebol.

José Fontelas Gomes chama-lhe «nova era», que acredita poder vir para ficar depois de uma experiência falhada quase nos primórdios da videoarbitragem em Portugal. «Em 2017 já tínhamos feito algo do género. Infelizmente, nessa altura as comunicações de videoarbitragem começaram a ser utilizadas quase arma de arremesso. É isso que não queremos. Ao fim de seis anos, penso que estamos com uma mentalidade um bocadinho já mudada. Penso que as pessoas vão entender as comunicações destas equipas de arbitragem: árbitro-videoárbitros, videoárbitro-árbitro. E o que espero é utilizem efetivamente isto para algo mais pedagógico, porque é esse o nosso principal objetivo: fazer com que compreendam as decisões dos árbitros, como as tomam e de que forma as tomam», disse o presidente do Conselho de Arbitragem, que lanço ainda um apelo em jeito de aviso.

«O sentido não é o de causar polémicas, até porque, se o caminho não for o de perceber como as coisas se passam, temos sempre a oportunidade de fechar novamente», apontou.

José Fontelas Gomes falou aos jornalistas à margem de um estágio dos árbitros da primeira categoria na Cidade do Futebol: ao todos, foram 23 os árbitros principais, 40 árbitros assistentes e 11 videoárbitros especialistas. Foram cinco dias de trabalho físico intenso, trabalho teórico, prático e até a simulação de um jogo com comunicação ativa entre a equipa de arbitragem de campo e VAR. «As pessoas que não pensem que ser árbitro é chegar ao fim de semana a um campo com um saco e arbitrar um jogo de futebol. Já não é! Eles [os árbitros] trabalham quatro dias por semana, reveem à quarta-feira os jogos do fim de semana e à quinta-feira quem vai ser videoárbitro no fim de semana tem um dia inteiro na cidade do Futebol para trabalhar vídeos e clips de jogos de outros campeonatos que não conhecem para tomar decisões. Tentamos que as decisões sejam tomadas de forma mais rápida e damos-lhe um minuto para tomarem uma decisão. Faz tudo parte do treino.»

A forma de comunicar, porque também por aí os juízes e videoárbitros serão mais escrutinados, também foi trabalhada. «Queremos que toda a gente comunique de forma limpa, precisa e concisa», atestou João Ferreira, vice-presidente do Conselho de Arbitragem.

Futebol mais resistente à mudança… mas a avançar

As explicações das decisões dos árbitros estão há muito presentes noutras modalidades. Mais resistente à mudança, o futebol tem dado passos de que o futuro passa também por aí. Começou pela videoarbitragem, também ela aplicada noutras modalidades mesmo que com outras designações, e está agora em testes para que o público, no estádio ou em casa, possa saber no momento o porquê daquela decisão do árbitro, como tem sido possível testemunhar no Mundial feminino.

Fontelas Gomes revela que esse salto, ambicioso, foi tentado pela Federação Portuguesa de Futebol, mas o parecer do International Board [IFAB] foi desfavorável, pelo menos para já. «Não conseguimos fazer como faz a FIFA [no Mundial 2023], apesar do pedido que fizemos assim que houve esta oportunidade por parte do IFAB. Neste momento, o IFAB só autorizou a FIFA a fazer em tempo real. Nós na altura fizemos logo esse pedido e penso que até fomos a primeira federação a fazê-lo, mas não nos foi concedido. Enquanto não chegarmos a esse patamar do entendimento da decisão tomada em tempo real, vamos fazer este patamar intermédio. Não queremos que com esta abertura haja mais ruído no futebol. O que queremos é que, com a nossa abertura, haja mais calma no futebol», vincou o dirigente, admitindo, se a medida for acolhida de forma construtiva, dar em breve mais um passo de aproximação ao chamado «tempo real».

«Se correr bem e se as pessoas entenderem o nosso objetivo sem que utilizem isso como arma de arremesso durante a semana, obviamente que vamos tentar ter uma periodicidade ainda maior do que um mês», projetou.

Uma das nove salas de videoarbitragem na Cidade do Futebol. São mais quatro do que havia na época passada. Em 2023/24 haverá também VAR na II Liga e na Liga feminina. Cada sala tem quatro pessoas: o VAR, o AVAR, um operador de imagem e um operador de linhas de fora de jogo. Na imagem trabalha-se em tempo real sobre um jogo que estava ser simulado num dos relvados da Cidade do Futebol. Qualquer potencial foco de distração tem de ser eliminado: telemóveis ficam fechados em cofres à entrada do edifício

E o que têm os árbitros a dizer?

Luís Godinho, árbitro internacional desde 2017, é cuidadoso sobre o tema. Diz esperar que a transparência pretendida com a divulgação das comunicações sirva para «esclarecer e baixar o ruído», mas sobre o assunto de pôr, à semelhança de jogadores e treinadores, os árbitros a falar logo após os jogos torce o nariz.

«Temos a noção de que falar após a decisão o no day-after iria acrescentar pouco. Eu ia sempre dizer que não sancionei algo porque foi o meu ponto de vista naquele momento, porque estava mal colocado ou porque estava obstruído por um o jogador. As pessoas não iriam perceber e não iria acrescentar grande coisa sobre o processo de decisão», explicou o juiz de Borba, na primeira categoria há quase uma década.

Ruído nos bancos é um problema e a ordem da UEFA é para tolerância zero

Em 2023/24, os avisos dados por comportamentos excessivos a elementos dos bancos deixam de existir por si só e passam a dar lugar, imediatamente, à mostragem de cartão amarelo. O ruído existente entre o retângulo de jogo e a bancadas é uma preocupação da UEFA, que instruiu as 54 federação a seguirem esta indicação após escutado um grupo consultivo composto por seis países e do qual faz parte Portugal. «A UEFA identificou alguns comportamentos que são a melhor imagem para a venda do futebol. Aglomeradores de pessoas a levantarem-se do banco, [confrontos] de banco contra banco. A UEFA não quer isso e as instruções vão no sentido de proteger a imagem do futebol», vincou o presidente do CA.

José Fontelas Gomes espera que no futuro as comunicações entre árbitros e VAR sejam divulgadas em tempo real, mas lembra que no passado já teve de ser dado um passo atrás. Tudo depende das pessoas

Luís Godinho vê com bons olhos a implementação desta medida para combater um problema evidente. «Num jogo de 90 minutos, não posso estar 15 ou 20 minutos do meu tempo de jogo focado no comportamento dos elementos dos bancos. Isto é uma coisa que temos combatido nos últimos anos e que vamos combater de forma ainda mais acérrima este ano.»

Para o árbitro de 37 anos, o caminho passa por aí, mas também por emagrecer os bancos, deixando de fora quem não é fundamental para o jogo. «Considero que no banco suplementar só deveria estar quem realmente faz falta à equipa naquele momento. (…) Há certas funções que não acrescentam valor à equipa no momento do jogo. Com todo o respeito, dou como exemplo um roupeiro ou um coaching: que função tem ele ali? A quantidade de pessoas que se aglomera sempre que há uma decisão errada da equipa de arbitragem é claramente prejudicial para o nosso trabalho e para o futebol. Queremos contribuir para um melhor futebol e passar ao lado. O meu objetivo é que ninguém fale de mim a seguir ao jogo. Esse é o meu sucesso.»

Em 2023/24, sobretudo nos clubes que lutam pelo título, a pressão será ainda maior num ano em que só o campeão terá acesso garantido à fase de grupos da Liga dos Campeões e ao encaixe de muitos milhões de euros que isso representa. José Fontelas Gomes admite que isso poderá ser uma fonte adicional de pressão, mas garante que os árbitros vão estar psicologicamente preparados.

«Independentemente das vagas nas competições europeias, nós encaramos cada época como sendo mais difícil do que a anterior. Esta preparação que foi feita é para que esta época seja mais competitiva do que a anterior. Sabemos que a pressão será maior por essa questão e o que tentaremos e vamos fazer é estarmos, aqui e ali, imunes a essa pressão. Poderá vir a haver mais ruído, estamos conscientes disso, mas vamos tentar passar um bocadinho à margem desse ruído.»

«Acha que eu gosto de ir a um café no dia a seguir ao jogo e ter toda a gente a falar de mim? Atrás de mim tenho uma família e quando afetam o árbitro, afetam a família. Não façam do nosso erro a bandeira daquilo que muitas vezes é o mau desempenho de uma equipa de futebol», apela o árbitro Luís Godinho

O ruído, esse, nunca será erradicado, mas, apelam os agentes da arbitragem, tem de ser combatido. Através de ações disciplinares, por vezes, mas sobretudo da pedagogia indispensável a um melhor entendimento das boas e do porquê das más decisões de um árbitro. «As pessoas têm de perceber que, tal como um avançado que tem um mau dia, o árbitro também pode ter. E há questões de interpretação que nunca vão desaparecer do futebol e acho que isto também é a beleza do futebol», atesta Luís Godinho.

Porque, no final do dia, o que se quer é ir a um café descansado.