O melhor jogador inglês de sempre, disse Gary Lineker e dizem muitos com ele. Um verdadeiro cavalheiro e um herói nacional, disse ainda David Beckham, a lembrar que lhe deve o seu nome do meio, Robert. No dia em que o mundo se despediu de Bobby Charlton, as homenagens chegaram de todo o lado e também se fizeram em campo, primeiro no Chelsea-Arsenal e depois em Bramall Lane, onde jogou o seu clube de sempre, com uma bela homenagem em forma de um grande golo de Diogo Dalot, que lhe dedicou a vitória. Antes do jogo, Bruno Fernandes, capitão do Manchester United, depôs uma coroa no relvado e foi com um minuto de aplauso que todo o estádio saudou a lenda que partiu aos 86 anos. O homem que sobreviveu à tragédia para se tornar um dos maiores da história, unânime como poucos.

Bobby Charlton foi campeão do mundo com a Inglaterra, foi Bola de Ouro e foi campeão europeu com o Manchester United, na vitória de 1968 frente ao Benfica que aconteceu dez anos depois do acidente de avião que vitimou muitos dos seus companheiros e o marcou para a vida. Para ele, aquela conquista, ao lado do treinador Matt Busby, representou muito mais do que um título. «Depois de Munique tudo tinha colapsado, e agora estava tudo bem outra vez», disse em 2001, num documentário dedicado à sua carreira.

A tragédia de Munique e a culpa

Tinha 20 anos quando a 6 de fevereiro de 1958 o avião que transportava a equipa do Manchester United depois de um jogo em Belgrado fez uma escala para reabastecimento em Munique e à terceira tentativa para descolar saiu de pista e se incendiou. Morreram 23 das 44 pessoas a bordo. Entre as vítimas estavam oito jogadores do Manchester United. Bobby Charlton sofreu ferimentos na cabeça, passou uma semana no hospital e viveu sempre com a dor dessa memória. «Ainda me afeta todos os dias. Às vezes enche-me de um arrependimento e tristeza terríveis. E culpa por ter sobrevivido, por ter seguido em frente e encontrado tanto», disse em tempos, segundo recordou agora o Daily Mail.

Na véspera do desastre de Munique, Charlton marcou dois golos no empate com o Estrela Vermelha que selou o apuramento do Manchester United para as meias-finais da Taça dos Campeões Europeus. Por essa altura já era um dos protagonistas da equipa feita de juventude e talento que o United construía sob a visão de Matt Busby, a equipa a que chamaram Busby Babes.

O filho do mineiro que não o viu vencer Portugal no Mundial

Foi aos 15 anos que Bobby Charlton rumou a Manchester, deixando para trás Ashington, a cidade mineira no nordeste de Inglaterra onde nasceu. O pai era mineiro e a paixão pelo futebol foi-lhe passada pela mãe, entusiasta do jogo e com um extenso rol de familiares futebolistas, entre eles o internacional inglês Jackie Milburn.

O irmão mais velho, Jack, seria também ele uma referência do futebol inglês – foram campeões do mundo lado a lado, em 1966. O pai nunca ligou a futebol e era um homem de trabalho. Não assistiu, por exemplo, à meia-final do Mundial 66, quando os dois golos de Bobby Charlton deixaram Portugal pelo caminho, porque estava a cumprir um turno na mina.

«Eu achava o jogo fácil»

Bobby Charlton era um talento natural. «Percebi que era bom porque os mais velhos queriam que jogasse com eles. Mesmo os adultos, eu tinha 10 ou 11 anos e convidavam-me para jogar com eles. Eu achava o jogo fácil, controlar a bola e passar, era natural. Não percebia porque os outros o achavam difícil», dizia, no jeito modesto que sempre o definiu.

À vocação e a essa humildade juntou o compromisso permanente com o jogo. Voltou a entrar em campo com a camisola do Manchester United menos de um mês depois do desastre de Munique. E dois meses mais tarde, em abril de 1958, estreou-se pela Inglaterra. Foi em Hampden Park, frente à Escócia. Mais tarde, conta o Guardian, disse que foi chamado demasiado cedo à seleção: «Acho que tiveram pena de mim por causa de Munique.»

Mas marcou um belo golo na estreia. E ao segundo jogo, mais dois, num particular frente a Portugal em Wembley. Fez parte dos convocados da Inglaterra para o Mundial 1958, onde não jogou. Mas já era referência da seleção quatro anos mais tarde, no Mundial 1962, central no sistema que Alf Ramsey idealizava e que viria a dar o título à Inglaterra em 1966.

O médio criativo da melena loura, que fazia a ligação da equipa e tinha um remate poderoso, capaz de criar perigo com qualquer um dos pés, liderou a Inglaterra até ao título. Ficou para a história o golo a solo que marcou ao segundo jogo, frente ao México, a espantar fantasmas e a mostrar o caminho depois do empate na estreia que ameaçava a euforia britânica. E depois, foi ele o carrasco de Portugal, com o bis na meia-final que levou a Inglaterra para a grande decisão.

O Mundial, Portugal e o Benfica em Wembley

Na final do Mundial, Bobby Charlton teve um papel mais discreto, encarregue de anular Beckenbauer. Fez toda a diferença, como diria mais tarde o Kaiser alemão, citado pelo Guardian: «A Inglaterra ganhou porque o Bobby Charlton foi um pouco melhor do que eu.»

O Mundial valeu-lhe a conquista da Bola de Ouro em 1966, à frente da outra grande figura da competição, Eusébio. Com Portugal e o Benfica associados a alguns dos maiores momentos da carreira de Charlton, os caminhos de ambos cruzaram-se várias vezes em campo. Dois anos mais tarde, de novo em Wembley, chegou a final da Taça dos Campeões Europeus.

Foi Bobby Charlton quem inaugurou o marcador, num golo de cabeça, antes de Jaime Graça empatar para o Benfica. No prolongamento, o United levou a melhor e acabou a vencer por 4-1, com o bis de Charlton a fechar a contagem.

Bobby Charlton referiu por várias vezes que podia ter sido bem diferente, recordando como nos minutos finais do tempo regulamentar Eusébio teve uma grande oportunidade, que Stepney defendeu. Fazia questão de recordar isso, bem como o gesto de fair play do Pantera Negra, que aplaudiu o guarda-redes adversário.

Esse desportivismo e o respeito pelo jogo são a marca de lendas como Charlton e Eusébio, que mantiveram uma amizade cordial ao longo dos anos.

A paixão pelo jogo, «como um miúdo com um brinquedo»

Charlton foi um de apenas nove jogadores que foram campeões do mundo, campeões da Europa de clubes e venceram a Bola de Ouro. O jogador que nunca se viu como goleador - «Era um médio ou um extremo», disse ao Guardian -, o futebolista elegante e correto que nunca foi expulso, fez 758 jogos e marcou 249 golos pelo Manchester United, somou 106 internacionalizações e apontou 49 golos com a camisola da Inglaterra. Esses registos de golos foram recorde durante muito anos, ambos superados por Wayne Rooney já na segunda década deste século.

Despediu-se do Manchester United em 1973, em Stamford Bridge, com os jogadores das duas equipas perfilados em guarda de honra. Ainda jogou no Preston North End, passou pela África do Sul e da Austrália, teve pelo meio uma curta experiência como treinador e depois dedicou-se ao seu clube.

Foi diretor e embaixador do Manchester United, foi um dos homens que defendeu em 1986 a contratação de Alex Ferguson. Tem uma estátua em Old Trafford, ao lado de George Best e Dennis Law, a «trindade» de 1968, tem uma bancada com o seu nome no estádio dos Red Devils. Ao longo dos anos, manteve-se sempre como uma figura tutelar e respeitada em Old Trafford.

E manteve sempre, sobretudo, a paixão pelo jogo. Como jogador. «Quando pegava na bola no aquecimento antes do jogo era como um miúdo com um brinquedo novo. Era um grande jogador, mas nunca deixou de sentir a emoção de ter a bola nos pés», contava Pat Crerand, que foi seu companheiro de equipa no Manchester United. Mas também como espectador. Este vídeo, em que Charlton conta como viveu na bancada os minutos finais da reviravolta épica frente ao Bayern Munique na final da Liga dos Campeões de 1999, diz tudo sobre essa paixão. «Quando a bola (de Solskjaer) entra, para mim o mundo parou. Pensei: o paraíso é isto. Tem de ser.»