5 de Março de 2008: F.C. Porto-Schalke 04, 1-0 (1-4, gp)
Com seis anos aquela parecia-me a melhor profissão do mundo. Ia pela mão do meu avô para o estádio e gostava do cheiro das castanhas assadas e da relva, das conversas dos adultos sobre um amarelo mal mostrado quinze dias antes e do o futebol, claro, a razão do passeio dominical.
Mas também guardava parte do meu tempo para os invejar. Os apanha-bolas...
Eram um D. Quixote nos meus seis anos. Seres diferentes, respeitáveis. Heróis que não só estavam ali ao lado dos ídolos, como ainda participavam mesmo no jogo. O grupo era sempre igual: meia dúzia de putos reguilas e um gordo que se colava. Eu adorava aquilo. A bola saía, eles repunham. Voltava a sair, voltavam a repor. Qual relógio suíço, este foi o primeiro tiki-taka que conheci.
Passaram meia dúzia de anos. Já ia à bola com os amigos, feito penetra, paciente à espera da boa vontade ou da distração do porteiro. O mundo era mais parecido com o que é agora, mas mais feliz porque não havia torniquetes.
Era um mundo arcaicamente prazenteiro, em que ainda se rasgava o cantinho do bilhete e o guarda-chuva não era visto como uma arma letal. E eles continuavam lá. O mesmo grupo de reguilas, mais o gordo. Mas pareciam diferentes.
Já havia uma bola para cada um e eu já não lhes achava tanta piada. Olhava-os de cima para baixo, do alto da minha condição de espectador, ainda que não pagante.
A minha admiração pelos apanha-bolas desvaneceu. Tornou-se simpatia, passou a indiferença, acabou em superioridade. Passaram de D. Quixote a Sancho Pança de terceira. Ainda necessários, mas sem brilho. «Nunca vão ser ninguém na vida», pensava.
Enganei-me. Percebi-o no dia em que conheci Manuel Neuer.
Aquele era o F.C. Porto mais entusiasmante de todos os de Jesualdo Ferreira. Não significa muito, eu sei, mas foi um F.C. Porto que passeou no campeonato e que tinha classe em todos os setores. Tinha o Lisandro a marcar como nunca, o Lucho a comandar como sempre, o Quaresma para os momentos de génio, o Paulo Assunção para todos os outros. E tinha o Tarik.
O Tarik era, por aquela altura, a maior descoberta da época. Jesualdo Ferreira sempre teve dificuldades em montar um trio na frente. Havia dois indiscutíveis e aparecia outro de vez em quando. Naquele ano era o Tarik. Estava embalado. E, como eu, também não conhecia Manuel Neuer. Era mais feliz, pois claro.
O F.C. Porto tinha tudo para ganhar. Tinha melhor equipa, melhor futebol, podia (devia?) ter goleado. Só não tinha Neuer.
E aquele jovem loiro, disse-me o comentador, tinha sido apanha-bolas. Eu ouvi e ri, mas abafei logo. «Espera lá. Isto não é assim tão parvo». Um tipo que era apanha-bolas mostrou ser, de facto, bom a apanhar bolas. Qual era a minha surpresa? Qual era a surpresa de todos? Nada me pareceu fazer tanto sentido como aquilo.
Por que ficou o Tarik com aquela cara quando ele lhe tirou um golo em voo e com o pé? Por que se assustou o Quaresma a ponto de atirar por cima isolado? Por que se surpreendeu o Lisandro ao vê-lo voar para defender o penalty?
Manuel Neuer é a prova viva de quão avançada está a Alemanha em relação ao resto da Europa. Se um apanha-bolas é assim, eu nem quero pensar como será um guarda-redes a sério. Se, ao menos, em vez dele tivessem escolhido o gordo...
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