*Enviado-especial ao Brasil

O envolvimento de um alto funcionário da FIFA numa rede de revenda de bilhetes, desmantelada nos últimos dias pela polícia do Rio de Janeiro, é um novo motivo de embaraço na relação do organismo que preside ao futebol mundial com as autoridades brasileiras. A investigação policial, iniciada há três meses, culminou na detenção de onze envolvidos, dez dos quais brasileiros, numa rede que teria como chefe operacional o franco-argelino Mohamadou Lamine Fofana.

No entanto, como o delegado Fábio Barucke, da 18ª Delegacia da Polícia Civil do Rio, confirmou aos «media», no balanço provisório da operação, haveria no interior da própria FIFA um nome acima de Lamine Fofana, que articulava a redistribuição e revenda de centenas de bilhetes, com lucros que em alguns casos atingiam os 1000%.

Segundo Fábio Barucke, responsável pela investigação que deteve Lamine Fofana na última terça-feira, o empresário franco-argelino circulava com um livre trânsito emitido pela FIFA, que lhe dava acesso às zonas VIP de todos os estádios e também ao Copacabana Palace, o histórico hotel do Rio que serve de base à operação da FIFA neste Mundial.

CEO de uma empresa de agenciamento, marketing e treino de «media» para desportistas, a Atlanta Sportif International, Fofana, de 57 anos apresenta-se no site da empresa em dezenas de poses ao lado de grandes figuras do desporto mundial, de Blatter a Pelé, passando por Eusébio ou Batistuta, e também alguns nomes do «show bizz», como Jack Nicholson, Sylvester Stallone e Marcello Mastroiani.

A preferência do empresário por ex-internacionais brasileiros é patente, não só nos critérios fotográficos do seu site, mas também na sua atividade no Rio, já durante o Mundial. Segundo a polícia, antes do França-Equador no Maracanã, no passado dia 25, Lamine ofereceu a vários ex-campeões mundiais, num evento público, garrafas de whisky em forma de chuteira, um lote de edição especial, avaliado em 3 mil euros.

Um desses ex-internacionais é o irmão de Ronaldinho Gaúcho, Roberto Assis, identificado numa das escutas em que Lamine negociava pacotes de bilhetes – segundo a Polícia do Rio, Assis, tal como outros nomes do futebol brasileiro, será chamado a depor numa segunda fase do processo. Segundo as autoridades policiais, o circuito passava pelos bilhetes incialmente distribuídos a Organizações Não Governamentais e a federações participantes no Mundial, que não chegariam ao destino, sendo redistribuídos e revendidos a preços muito superiores. As autoridades estimam o lucro da quadrilha com o circuito de revenda em cerca de 800 mil euros por jogo, e 70 milhões de euros no final do Mundial – e não apenas deste, já que a investigação detectou um circuito em funcionamentos pelo menos desde 1998.

Na investigação ainda em curso, a denúncia do quadro da FIFA, que já estará identificado, mas cujo nome ainda não foi divulgado, teria partido de um advogado brasileiro, José Massih, conselheiro legal da Atlanta Sportif International e ex-representante do internacional brasileiro Elano. Segundo o jornal «O Dia», teria sido Massih a explicar os meandros do circuito, que mantém sob suspeita elementos das federações de Espanha, Brasil e Argentina, responsáveis pela reentrada no circuito de bilhetes destinados a familiares e amigos de jogadores, que não chegavam a ser usados.

As notícias dos últimos dias, e as revelações feitas pela polícia, levaram já o director de marketing da FIFA, Thierry Weil, a garantir, em nota, que a FIFA tem colaborado com as autoridades nos últimos cinco anos: «Sempre foi prioridade, para nós, proteger os adeptos contra riscos associados à venda ilegal de ingressos e garantir que as acções devidas sejam tomadas contra qualquer pessoa que viole os regulamentos».

Na Europa ou na Ásia, em África ou na América, o negócio ilícito da revenda de bilhetes tem sido um fenómeno recorrente nas últimas edições do Campeonato do Mundo, e outras competições organizadas sob a egide da FIFA, envolvendo em diversas ocasiões, nos últimos anos, alguns dos seus membros mais proeminentes. Um deles, o ex-presidente da CONCACAF e ex-membro do Comité Executivo, Jack Warner, que renunciou aos cargos em 2011, depois de se provarem diversos ilícitos, entre eles a revenda de bilhetes nas edições de 2002 e 2006.

Depois de meses a fio em que a FIFA falou grosso perante os poderes políticos e judiciais do Brasil, exigindo prontidão nos trabalhos e vários regimes legais de exceção, esta é já a segunda situação durante o Mundial em que a polícia põe em xeque o funcionamento do organismo. A primeira foi a invasão do Maracanã por parte de 90 adeptos chilenos, a 18 de junho, numa zona em que os controlos de segurança eram responsabilidade das empresas privadas contratadas pela FIFA para controlar o acesso aos estádios – e que, segundo as autoridades policiais, estavam desde o início do Mundial a trabalhar com menos efetivos do que o acordado.

Na reunião que se seguiu ao incidente, que culminou com a deportação de 85 adeptos, foi decidido reforçar os laços de cooperação institucional entre FIFA e polícia – na prática, com a polícia civil do Rio a assumir mais responsabilidades no perímetro de segurança do Maracanã. Agora, com a informação de que um dos seus quadros é o responsável máximo pela quadrilha, a FIFA volta a ter manchada a imagem de eficácia e competência com que sempre quis comandar o processo do Mundial 2014.

A notícia surge numa altura em que reforça, também, a sensação de que, apesar das reticências e da contestação bem vincada antes do Mundial, as autoridades brasileiras chegam à última semana de competição com um balanço amplamente positivo – bem mais do que poderia supor-se pelas notícias dos primeiros dias de junho.

O clima tem repercussões políticas importantes, como se percebe pela divulgação das sondagens mais recentes, como a Datafolha, que voltam a fazer subir (de 34 para 38%) os índices de aprovação em relação a Dilma Roussef, presidente em exercício. Mais relevante ainda, é a subida da aprovação popular à realização do Mundial, que agora já só tem 27% de rejeição, contra 41% em abril. Mas, como muitos jornalistas brasileiros não deixam de sublinhar, é de supor que um eventual desaire do Brasil com a Colômbia, nesta sexta-feira, seria capaz de fazer com que os relógios voltassem para trás.