O contrato com o Benfica tinha chegado ao fim e Miguel Vítor era, no verão de 2013, um jogador livre. Depois de dois empréstimos (ao Aves e ao Leicester City) e de anos pouco utilizado na equipa principal dos encarnados, o defesa central tinha o destino nas próprias mãos. O destino e uma oferta do PAOK Salónica, da Grécia.

A situação periclitante do país levou-o a fazer uns contactos extra. Queria saber no que se estava a meter. «Falei com o meu empresário e também com o Lino, um antigo jogador do FC Porto que na altura estava no PAOK. Perguntei-lhe se o clube estava bem financeiramente e se pagava a tempo e horas», recorda o jogador em conversa com o Maisfutebol.

A resposta foi positiva. Miguel Vítor não precisava de se preocupar. Depois de anos com a corda no pescoço, o clube da segunda maior cidade da Grécia respirava saúde desde 2012, quando foi comprado por Ivan Savvidis, um poderoso empresário russo com negócios nas indústrias alimentar, do tabaco e dos plásticos. «É uma equipa que não falha nos pagamentos», conta Miguel Vítor, que vai já para a terceira época no PAOK Salónica, onde diz sentir-se bem.

Miguel Vítor saiu do Benfica para o PAOK. Diz que a situação não é tão grave como se pinta no estrangeiro

A situação no clube de Miguel Vítor não é um espelho do que se passa no resto do país, onde o desemprego ronda os 25 por cento. Cansados da austeridade imposta pela União Europeia, os gregos foram às urnas no início de julho e disseram não a mais sacrifícios. Mas o resultado do referendo não teve os efeitos desejados. O nervosismo social aumenta de dia para dia enquanto o governo grego anuncia novos acordos com os credores.

«Em Portugal, passa-se nas notícias a imagem de uma situação muito complicada: que os supermercados estão vazios e que não há medicamentos. Nota-se alguma diferença em relação ao passado. No consumo, nas lojas, mas nada de especial», observa Miguel Vítor.

O jogador do PAOK, onde chega a formar dupla no eixo defensivo com outro português (Ricardo Costa), estava em estágio fora do país na altura do referendo e quando os bancos fecharam e limitaram os levantamentos bancários a um máximo de 60 euros por dia. Mas, mesmo que estivesse na Grécia, já estava precavido. «Antes disso acontecer consegui levantar bastante dinheiro para o dia-a-dia e o clube disponibilizou-se a ajudar caso precisássemos.»

Jordão Diogo, na Grécia desde 2010/11, explica que a sua carreira tem andado em contra-ciclo com a realidade económica do país. No primeiro clube grego em que esteve – primeiro por empréstimo de um clube islandês e depois, a partir de 2011/12, a título definitivo – chegou a ter meio ano de salários em atraso. «Foi na minha segunda passagem pela equipa. Descemos de divisão e o clube perdeu as ajudas das receitas televisivas. Nos últimos seis meses não recebi e levei o caso para a FIFA. Sobrevivi com o dinheiro que fui poupando ao longo dos anos. Mas foi complicado», recorda ao Maisfutebol este lateral esquerdo de 29 anos.

Jordão Diogo está atualmente no Kerkyra, clube da I liga que terminou a época passada na 10.ª posição, mais perto da zona europeia do que dos lugares de descida. «Desde que cá estou [na Grécia], este tem sido o clube que foi mais correcto comigo. Tenho de dar graças a Deus por ter o presidente que tenho. Se há atrasos nos pagamentos? Há. Tudo depende dos direitos televisivos e isso também atrasa. Mas nunca ficamos mais do que um mês sem receber e mesmo aí acabamos sempre por receber alguma coisa», aponta.

Jordão Diogo está na Grécia desde 2011. Pelo meio teve uma passagem fugaz pelo V. Setúbal. «Há salários em atraso, mas nunca ficamos mais de um mês sem receber», diz

Kerkyra (Corfu em português) é uma ilha turística situada na zona oeste da Grécia, perto da fronteira com a Albânia. «Aqui todas as famílias têm uma ou duas casas, para depois as arrendarem na época alta. E, para eles, o verão aqui tem seis meses.» Para o jogador, Corfu tem superado bem a crise que afeta o país há seis anos. «Saí em finais de maio e nessa altura os turistas estavam a começar a vir. Agora já está cheia e em agosto vai estar ainda mais à pinha. Sinceramente, não noto os efeitos da crise aqui», observa.

Em Patras, terceira maior cidade da Grécia, os efeitos da crise são mais notórios, mas a situação também não é de desespero. O porto da cidade, com forte ligação a Itália desde o império romano, perdeu parte do tráfego e há mais promoções em lojas de roupa, por exemplo.

Ainda assim, o quotidiano não sofreu alterações radicais. «A vida está pior, mas as pessoas continuam a ir às compras, aos restaurantes, e os cafés e as praias estão sempre cheios. Apesar de haver pouco dinheiro, as pessoas estão sempre com um sorriso nos lábios. Não se deixam abater», diz ao Maisfutebol Filipe da Costa, que passou na Grécia sete dos últimos dez anos como futebolista.

Também ele conseguiu evitar o aperto causado pelo fecho dos bancos. «Não sou parvo e antecipei essa possibilidade com alguma antecedência. Há dois meses levantei algum dinheiro que tinha no banco e transferi outro para Portugal.»

Filipe da Costa vai para a terceira época no Panachaiki, da segunda divisão grega. Há alguns anos, o clube chegava a registar casas na ordem dos 10 mil espectadores no terceiro escalão grego. Agora, a média rondará as 800 a mil pessoas.

Culpa da crise? Também mas não só. «É claro que há menos pessoas a ir aos estádios. E quando há menos dinheiro, a tendência é cortar nos hobbies, como as idas ao futebol. Mas, neste caso, os adeptos também estão descontentes com o presidente e boicotaram os jogos. O clube está a ser vendido e os jornalistas dizem-me que, quando isso acontecer, passaremos imediatamente a ter 4 mil pessoas no estádio. O representante do comprador diz que a ambição é subir.»

Filipe da Costa reconhece que os tempos de abundância já lá vão. Os anos que já leva de futebol na Grécia permitem-lhe estabelecer paralelismos. «Lembro-me de uma história de um antigo colega meu. Estávamos na I liga e ele não quis renovar. Vou de férias e quando volto dizem-me que ele foi para a 3.ª divisão. Foi ganhar 250 mil euros com 50 mil na mão.»

«A maioria das pessoas quer sair do euro e regressar ao dracma. Sentem que nos primeiros tempos não seria fácil, mas que depois seria o melhor caminho», diz Filipe da Costa

Outra das diferenças drásticas está nos prémios de jogo, que desapareceram. Em 2006, uma vitória forasteira do Ionikos (onde Filipe esteve entre 2004/05 e 2006/07) sobre o Panathinaikos rendeu aos jogadores um valioso extra. «Recebemos 5 mil euros de prémio e no ano seguinte, quando estava no Larissa, ganhámos a taça: passado uma semana, recebemos 200 mil euros», recorda.

A falta de dinheiro não é o único problema que afeta o futebol na Grécia. As apostas ilegais são um problema com o qual as autoridaddes têm dificuldade em lidar

A situação mudou. Mais nuns clubes do que noutros. O Panachaiki está na fronteira entre a estabilidade absoluta e a sombra da incerteza.

O caso mais mediático de colapso numa equipa grega é o do AEK. Em 2012, por causa das dívidas, o terceiro clube do país com mais títulos de campeão, apenas atrás de Olympiakos e Panathinaikos, foi afastado das competições europeias pela UEFA. No ano seguinte, ficou em penúltimo lugar na I liga. Poucos dias depois, os dirigentes da histórica equipa de Atenas tomaram uma decisão drástica. Incapazes de fazer face a um passivo na ordem dos 40 milhões de euros, declararam o clube insolvente. O AEK recomeçou praticamente do zero, na terceira divisão. Longe dos palcos a que estava habituado, mas livre de problemas financeiros. Esta época já está de volta ao principal escalão.

Em abril de 2013, os adeptos do AEK invadiram o relvado após um golo da equipa adversária. O clube foi despromovido no final da época, mas acabou por ser declarado insolvente algum tempo depois


Desde o início da crise, os clubes perderam grande parte das receitas. Dos patrocinadores, dos direitos televisivos e de bilheteiras. Quem o diz é o jornalista grego Jorge Mazias, chefe de redação do jornal Sportday. «Nos últimos cinco anos, os jogos perderam muitas pessoas. Quantas? Podemos falar de 50 por cento», começa por explicar em conversa com o Maisfutebol.

São tempos em que o dinheiro escasseia e o futebol é visto como um luxo. «Num jogo de I liga, o bilhete mais barato para um jogo do Panathinaikos ou do Olympiakos custa 20 euros. Imagine uma família de três pessoas: são os bilhetes, é o transporte, a água… não gasta menos do que 70 euros», exemplifica Jorge Mazias.

Até o Olympiakos, pentacampeão grego e um dos poucos clubes que parecem escapar à crise pelos intervalos da chuva, anunciou reduções entre 30 e 50 por cento nos preços dos bilhetes para 2015/16. O objetivo é combater a deserção gradual dos adeptos. «O Olympiakos é uma empresa sólida financeiramente, mas estes desenvolvimentos não ajudam», disse no início de julho o diretor geral do clube, Giannis Vrentzos.

O Olympiakos anunciou reduções de preços por causa da crise. Estádios perderam milhares de espectadores desde o início da crise

Bruno Pinheiro, que jogou na Grécia nas segundas metades das épocas de 2013/14 e de 2014/15 (primeiro do Niki Volos e depois no Apollon Smyrnis, de Atenas) não se esquece do que encontrou no Niki Volos. Tempo suficiente para ajudar a equipa a subir para a I liga. «No playoff chegávamos a ter 20 mil pessoas no estádio», conta.

Nesse ano, ficou em primeiro lugar na II liga, garantindo a primeira subida ao principal escalão do país em 50 anos. O então proprietário e presidente do clube, que pagou certo até perto do final da época, não cumpriu o prometido: pagar os prémios de subida e do título.

Em poucos meses, o Niki Volos ficou virado do avesso, muito por culpa de incompatibilidades insanáveis entre os adeptos e o dono, que se desfez de grande parte do plantel do ano anterior. Bruno Pinheiro já estava na Índia (no FC Goa), mas seguiu com atenção o desabar do clube. De uma época para a outra, as assistências aos jogos passaram dos 20 mil para uma média 3 mil espectadores por encontro. Estava criada a bola de neve.

«A equipa deixou de ganhar e o presidente deixou de pagar. A maioria dos clubes na Grécia funciona assim», lamenta o jogador. Em dezembro, o clube perdeu tudo. O presidente e o capital que ele (o presidente) deixara de injetar. Nessa altura, os jogadores, com vários meses de salários em atraso, chegaram a dormir no próprio autocarro. O último encontro do Niki Volos na I liga foi a 17 de dezembro.


Bruno Pinheiro e Atenas: «Pelo que via nas notícias, estava à espera que fosse assistir a coisas que me chocassem e isso não aconteceu. Em Portugal vê-se mais sem-abrigo na rua»

Tal como o AEK, o antigo clube de Bruno Pinheiro vai ter começar tudo de novo a partir da terceira divisão. Alguns meses antes já tinha sido a vez do Aris Salónica, o primeiro campeão da história da liga helénica.

Em março de 2015, o OFI foi a última vítima: o clube da ilha de Creta já não participou nas derradeiras cinco jornadas do campeonato. Uma das últimas vitórias foi contra o Kerkyra de Jordão Diogo, por 3-2, com um hat-trick de um português: Carlos Milhazes, que, com dois meses de salários em atraso, deixou o clube logo após esse jogo, para rumar ao Levadiakos.

«Apesar de ter saído, fiquei um bocado surpreendido com o que aconteceu depois. É um clube com muita história e com uma grande massa associativa», recorda Milhazes, que saiu do clube da ilha de Creta não pelos salários em atraso mas por ter em mãos uma proposta mais vantajosa do Levadiakos, o clube sediado numa pequena cidade a cerca de 130 quilómetros de Atenas.

O jogador, de 34 anos, garante que um dia vai regressar ao OFI, apesar de o clube estar agora na terceira divisão do país. «Foi uma promessa que fiz a mim próprio e aos adeptos. Vou lá voltar, seja como jogador ou noutras funções.» Pelo clube, pelos adeptos e por Creta. «É uma ilha paradisíaca que eu recomendo a toda a gente. Se notei lá os efeitos da crise? Sinceramente não. Nem aqui sinto [em Levadia]. O que vejo é os restaurantes cheios de gregos e de turistas», observa.


Milhazes não pensa em sair da Grécia nos próximos anos e diz que os portugueses têm muito a aprender com os gregos. «Estão a mostrar que não mandam neles»

Jorge Mazias explica que os clubes gregos estão hoje de pés e mãos atadas. Sem receitas que permitam que se tornem auto-sustentáveis, estão reféns daquilo a que chama «petrodólares», injetados pelas mãos dos proprietários. E não perspetiva grandes melhorias no setor a curto/médio prazo. «Esta segunda-feira [20 de julho], o IVA dos bilhetes subiu de 13 para 23 por cento. É muito mau para os clubes, que não podem subir os preços porque as pessoas já nem vão aos estádios», diz.

O jornalista grego conta pelos dedos das mãos o número de clubes gregos em situação desafogada: «Olympiakos, Panathinaikos, PAOK, Atromitos e Asteras.» Os outros, mesmo os que pagam a horas, tiveram de reduzir drasticamente a folha salarial. «Por exemplo, um clube mediano como o Levadiakos pagava entre 100 e 150 mil euros por ano. Agora? Não ultrapassa os 40, 50, 60 mil. Até há jogadores a ganhar mil euros por mês. É isso ou nada», aponta.



Apesar de reconhecerem que os problemas financeiros da Grécia causam preocupação, os jogadores contactados pelo Maisfutebol garantem sentir-se bem no país.

Filipe da Costa então nem se imagina a sair da Grécia. O jogador do Panachaiki até está a tirar gratuitamente o curso de Marketing, numa parceria que o sindicato dos jogadores gregos celebrou com uma universidade dinamarquesa.

«É mais uma janela. Para além disso, eu já falo grego, a minha mulher fala grego e o meu filho, que nasceu na Grécia, também. É certo que há dez anos ganharia facilmente o dobro do que ganho agora, mas estamos habituados ao país. Voltar para Portugal? Não me passa pela cabeça agora. Quando falo com colegas meus daí, alguns dizem-me que têm três, quatro meses de salários em atraso», conclui.