Renato Manuel Alves Paiva. O Maisfutebol apanha-o a 28 de dezembro de 2021, um ano e um dia depois de ter cumprido o último de centenas (milhares?) de jogos enquanto treinador dos quadros do Benfica, onde esteve mais de década e meia.

Uma volta ao sol depois, a vida profissional do treinador de 51 anos - uma das dez figuras do panorama futebolístico nacional para a nossa redação em 2021 - mudou para melhor no distante e caliente Equador, onde conduziu o Independiente del Valle a um inédito título de campeão nacional. Casamento perfeito? Não podia sê-lo mais, pelo menos até agora. Renato ensinou o Independiente a ganhar e, com o Independiente, Renato teve sucesso, à primeira tentativa, no «futebol de resultado».

Em entrevista ao Maisfutebol, Renato Paiva fala sem fantasmas sobre todos os assuntos. Partilha a receita do sucesso no Equador, admite que um convite de uma equipa da MLS o fez balançar, mas garante: o sentimento de gratidão ao Independiente del Valle mais ainda e é por isso que está decidido a cumprir o contrato que o liga ao clube até ao final de 2022. Olha para a formação do Benfica, aborda a saída de Jorge Jesus e a promoção de Veríssimo. «Sou um tipo com azar», desabafa bem-humorado quem sonhou e continua a sonhar treinar um dia o clube do coração. Não tem problemas em elogiar a coragem de Ruben Amorim no Sporting e de notar o aparecimento de jovens da formação na equipa principal do FC Porto.

Sobre o momento do Benfica, no dia em que o clube encarnado anunciou a saída de Jorge Jesus, palavras sentidas de quem, já o dissera, fez parte da formação na universidade do terceiro anel. «Para haver estes problemas é porque o Benfica não está bem. E isso deixa-me muito triste!»

LEIA TAMBÉM:

«Admira-me não me perguntarem mais por jogadores do Equador»

«Se fosse hoje, Rui Costa escolhia-me para a equipa do Benfica»

Maisfutebol – - Há um ano, em entrevista ao Maisfutebol o Renato disse o seguinte sobre o Benfica B na II Liga: «Se alguém conseguir ser campeão, ‘chapeau’.» Isto pelas especificidades do projeto, de privilegiar o crescimento do jogador mesmo que isso possa custar pontos. E hoje o Benfica B é líder. Como é que isto se explica?

Renato Paiva – Explica-se bem. Há um trabalho de um bom treinador, que é o Nélson Veríssimo, de uma equipa técnica que já estava montada e que conhece a II Liga, e de um conjunto de jogadores que foi crescendo e que com o acrescentar de outros jogadores de qualidade conseguiu-se um grupo que está a ser super competente e que eu adoraria que ganhasse a II Liga. Mas continuo a dizer que isso não é o mais importa. O FC Porto B também ganhou em tempos a II Liga e onde é que andam os jogadores que a ganharam? Para mim, equipa B será sempre formar e desenvolver. Se puder juntar o útil ao agradável, fantástico! Adorava que o Benfica ganhasse a II Liga, mas se me disserem que isso vai boicotar o crescimento dos jogadores, assim não! Mas não acredito que isso esteja a acontecer com o Benfica B e pode ser possível fazer as duas coisas. Espero que isso aconteça, não só porque tenho um carinho muito grande pela equipa técnica e pela estrutura, mas em especial também pelos jogadores.

MF – Mas sente que Nélson Veríssimo tem tido um trabalho mais facilitado pelo facto de não perder tantos jogadores para a equipa principal como aconteceu consigo no tempo de Lage e até no ano passado quando ficou sem Gonçalo Ramos?

RP – Sem dúvida! Isso é de La Palice. Se podes trabalhar com os jogadores o ano inteiro, vais conseguir fazer um trabalho diferente. Se numa semana trabalhas um dia ou dois com um jogador para preparar um jogo e os outros jogadores estão ausentes, é muito fácil perceber. Parece-me evidente que essa estabilidade existe. O próprio Luís Castro, quando ganhou a II Liga pelo FC Porto B, dizia que tinha um grupo que não subia nem descia. Tinha um grupo sempre presente. Obviamente que a estabilidade ajuda a obter resultados.

MF – Mas esta campanha da equipa B não prova que há jogadores que mais do que estarem prontos para a equipa principal já podiam estar a assumir um papel importante nela?

RP – É uma resposta que só o treinador da equipa principal do Benfica pode dar. Eu já reconheci um potencial enorme ao Paulo [Bernardo] e ao Tomás [Araújo]. Reconheço que em condições normais vão ser figuras do Benfica. «Quando?» É uma resposta que só o treinador principal do Benfica pode dar.

MF – Mas sendo agora esse treinador Nélson Veríssimo, acredita que podem vir a ter mais oportunidades?

RP – Não sei. Ele trabalhou com eles e conhece-os. Mas o Veríssimo chega à primeira equipa e diz assim: ‘Comparo Pizzi com Paulo Bernardo? Comparo Rafa com Paulo Bernardo?’ Não sei… Esta é uma das tais realidades às quais só se podem responder quando se passa por elas. É uma possibilidade, porque o Paulo tem estado a trabalhar com o Veríssimo. Mas o Veríssimo muda de contexto: tem Darwin, Yaremchuk, Seferovic e Gonçalo Ramos. É óbvio que o Gonçalo Ramos é um excelente jogador, mas tem concorrência. É o dia a dia, é o treino que poderá permitir-lhe dizer: ‘O Yaremchuk é internacional ucraniano, mas o Gonçalo Ramos dá-me mais no treino do que ele, por isso vou apostar no Gonçalo porque não olho a credencias ou a datas de nascimento. Se é melhor, joga’. Mas é o treino que vai dizer isso.

MF – O Sporting é campeão nacional com uma mescla de jogadores da formação com jogadores experientes. No fundo, uma receita semelhante à do último Benfica campeão. No Benfica, desde a saída de Ruben Dias que a equipa A não tem um titular proveniente da formação. Como é que isto se explica a um adepto numa altura em que ele vê a equipa ser inferior nos confrontos diretos com os principais rivais?

RP – É uma boa pergunta, mas não consigo explicar. Primeiro, porque não vi muitos jogos do Benfica [risos]. Nem tive tempo. Mas posso dizer que gosto de ver a coragem que o Ruben Amorim tem em apostar em jovens, gosto de ver o crescimento do Vitinha, do Fábio [Vieira] e do João [Mário], que são jogadores absolutamente fantásticos da formação do FC Porto. Gosto de ver o crescimento destes jogadores, mas também defendo que a aposta em excesso nos jovens não funciona para ganhar campeonatos. O Vitinha também só está a aparecer agora.

MF – Mas já com rodagem de Premier League.

RP – Cada realidade é uma realidade. Eu só consigo avaliar potencial e não consigo ver a realidade do Benfica neste momento. Gostava muito de ver os jogos do Benfica, mas a diferença horária e o excesso de trabalho não me permitem. Como treinador que passou pela formação deixa-me sempre muito contente ver os jovens jogadores a aparecerem.

MF – Clubismos à parte, que sentimentos desperta este sucesso do Sporting num treinador de formação quando vê uma equipa ganhar com uma aposta quase desprendida em jovens?

RP – É a prova de que às vezes não é por ir buscar fora que se traz melhor. E às vezes tapa-se o lugar a um miúdo destes, o que não deveria acontecer. Mas deixa-me satisfeito também porque o Ruben veio quebrar umas quantas etiquetas: porque este é um país de etiquetas. Como o Abel Ferreira. Malta com menos experiência que até passou pela formação e que mostra que isto tem muito a ver com talento. O jogador tem a ver com talento e o treinador tem a ver com talento. A mim já me perguntaram: ‘A experiência é fundamental para si?’ Não foi no Equador. Foi a experiência que acumulei a ensinar durante anos, a passar o jogo e a fazer evoluir os jogadores. A experiência de primeira liga do Equador era zero para mim e isso não foi problema para sermos campeões. Isso tem a ver com talento.

MF – (…)

RP – Em Portugal, eu fui recusado em equipas da primeira liga porque diziam que eu não tinha ‘relva’.

MF – Relva?

RP – Não ter relva é não ter experiência. Então pronto, tudo bem! É perfeitamente legítimo terem esta posição, atenção! Mas depois aparecem os Rubens, os Abeis Ferreiras e outros que fizeram o seu caminho, que não têm tanta experiência e mesmo assim dão as provas que estão a dar.

MF – Essas são as etiquetas mais difíceis de arrancar no futebol português?

RP – Sem dúvida! As do treinador da formação. Que está farto de ganhar e de apresentar bons trabalhos, mas depois acha-se que as equipas dele só jogam bem porque jogam contra meninos. Vou dar o exemplo de um dos melhores treinadores de todos os tempos: é evidente que foi jogador, mas o Pep Guardiola nunca tinha sido treinador na vida, chegou, pegou no Barcelona B e subiu a equipa. Depois, tomou conta da equipa A, perdeu os três primeiros jogos e a partir daí foi o melhor treinador da história do Barcelona. Tinha experiência? Tinha talento, capacidade! Em Portugal há esta mania: ‘Tem de ter experiência’. Mas eu pergunto: ‘Quem decide e escolhe treinadores também tem experiência?’ Vamos fazer aqui um scan a presidentes e a diretores que escolhem treinadores: será que eles têm experiência de futebol? Se calhar não... E por isso é que ao fim de dez jornadas já há oito ou nove despedimentos de treinadores. E no Equador, que já me disseram que é no ‘terceiro mundo’, despediram-se três treinadores em 30 jornadas. Afinal, onde é que é o terceiro mundo?

MF – Há dirigentes sem uma visão clara do que se pretende para o futebol da equipa?

RP – Em Portugal escolhe-se assim: ‘Agora quero um treinador que saia a jogar de trás’. Três derrotas: ‘Afinal agora é melhor ir buscar um treinador que jogue direto’. Mas não é toda a gente e não quero generalizar! Portanto, a maior etiqueta é a do treinador da formação, que como treina meninos não tem experiência. Como é que alguém é experiente se não for lançado às feras e se não passar à prática?

MF – Gonçalo Ramos: «Um futuro lindíssimo no futebol.» Tomás Araújo: «Tem tudo em potencial para ser um central de equipa grande.» Paulo Bernardo: «Pode vir a ser um caso sério no futebol mundial se começar a fazer golos.» Disse-nos isto há um ano. Mantém?

RP – Mantenho tudo! Não mudo uma vírgula. Nem uma!

MF – Disse recentemente, em mais do que uma entrevista, que o Tomás Araújo foi o central mais completo que treinou a par do Ruben Dias. Tem 19 anos e o Ruben Dias já era titular indiscutível do Benfica com 20 anos. Ele já podia estar nesse patamar?

RP – Não. Antes de chegar à equipa principal do Benfica, o Ruben Dias esteve duas épocas e meia na equipa B. Ainda mais sendo defesa, o Tomás tem de andar mais tempo na equipa B, defender mais vezes, saber defender mais vezes. No fundo, ser posto à prova a defender, coisa que na formação não existe. Precisará sempre de mais tempo na equipa B, porque isso não é assim.

MF – E Paulo Bernardo? Imagina-o, por exemplo, compatível com João Mário num meio-campo a três?

RP – Sim. Porquê não? Como vejo também o Pizzi, que convém não esquecer que também está lá. O Benfica tem muitos médios de qualidade mas é uma questão de ver se o sistema potencia os médios que a equipa tem. Mas esse é um trabalho para o treinador do Benfica. Eu conheço as capacidades do Paulo, sei que pode ser um oito ou um dez. Mas o resto depende do sistema que for definido.

MF – Gonçalo Ramos pode estar a ser vítima do forte investimento que o Benfica fez nos últimos dois anos em avançados? Darwin por 24 milhões de euros e Yaremchuk por 17?

RP – Óbvio. Não tenho dúvidas nenhumas! São jogadores com mais hierarquia e experiência do que o Gonçalo, que terá de fazer o seu caminho. Ou prova nos treinos que é melhor do que eles, ou então tem de esperar por outro momento para aparecer. Mas parece-me óbvio que fica sempre mais difícil um jovem jogador afirmar-se quando há esse tipo de investimento.

MF – Mas essas melhores respostas nos treinos são suficientes para derrubar o peso dos milhões?

RP – Para mim, sim! Eu cheguei ao Independiente del Valle e pus de imediato a titular um miúdo com 18 ou 19 anos que nunca tinha jogado. Ao fim de seis meses ele [Pedro Vite] estava na MLS. E havia gente com muito mais… O [Éfren] Mera, por exemplo, tinha ganho a Copa Sul-Americana. Mas, para mim, o treino é o mais importante. Para miiiiiiim! E eu acredito que quem rende no treino rende no jogo! Isto funciona por rendimento e esse rendimento é testado no treino. Eu vejo as coisas dessa maneira. Eu! Agora os outros não faço ideia…

MF – Fale-nos do Henrique Araújo, que está entre os melhores marcadores da II Liga e que foi aposta sua no Benfica B.

RP – Foi aposta minha na equipa B, exatamente. É um ponta de lança raro, com faro de golo, muito boa mobilidade, bom cabeceador e com agressividade defensiva. É dos tais miúdos que são aqueles ‘bichos’ raros de área. E tem uma humildade fantástica. É um miúdo muito na linha do Gonçalo Ramos, mas um bocadinho menos físico e um bocadinho mais técnico do que ele. Acredito que pode perfeitamente chegar a um patamar muito alto, mas tem de ter espaço para aparecer e poder potenciar as suas qualidades jogando.

MF – Jorge Jesus comparou-o em tempos a Pauleta.

RP – Exatamente! Pelas suas movimentações dentro da área, faz muito lembrar o Pauleta. Mas, claro, precisa de jogar. Anda na II Liga a ganhar experiência e, se não tiver espaço na primeira equipa do Benfica, uma experiência noutra equipa da Liga não lhe fará mal nenhum, porque precisa de consolidar as suas características. Parece-me ser um jogador que poderá ser muito importante no futuro do Benfica.

LEIA TAMBÉM:

«Admira-me não me perguntarem mais por jogadores do Equador»

«Se fosse hoje, Rui Costa escolhia-me para a equipa do Benfica»