Porto, 23 de março de 2004.
Há exatamente 20 anos o FC Porto recebia no então novíssimo Estádio do Dragão o Lyon de Essien, Juninho Pernambucano e Élber e daria mais um passo decisivo para a histórica conquista da Liga dos Campeões.
Depois do milagre de Old Trafford, o sonho parecia cada vez mais realizável, com um triunfo por 2-0 frente à equipa comandada por Paul Le Guen a encaminhar os quartos de final.
«Vi tudo aquilo da primeira fila», recorda ao Maisfutebol Ricardo Fernandes, antigo médio desse FC Porto de José Mourinho, que precisamente nesse dia, então com apenas 25 anos, fez o último jogo da sua carreira na Liga dos Campeões.
«Mourinho apostava em mim pela capacidade que eu tinha nas bolas paradas. Nunca cumpri. Até acho que foi por causa disso que deixei de jogar. Nesse jogo, entrei nos 10 minutos finais, vi um cartão amarelo, tive um livre à entrada da área e… acabei por fazer um “passe” ao guarda-redes. Esse lance do livre desperdiçado marcou-me. Não voltei a jogar mais até à final.»
Tudo por causa de um livre, quando do lado contrário estava Juninho Pernambucano, «se não o melhor, um dos melhores de sempre nas bolas paradas»: «Só não lhe pedi a camisola no final porque preferia ficar com a minha. Tinha muita gente a quem oferecer a que vestia.»
Este episódio ocorreu depois daquela noite mágica em Manchester, em que o golo de Costinha quase no final do jogo permitiu ao FC Porto ultrapassar o colossal United de Sir Alex Ferguson. Dessa vez, Ricardo Fernandes abdicou de bater o tal livre decisivo. Ainda assim, após a alegria da vitória, o médio ficou com as orelhas a arder no balneário: «Deixei para o McCarthy bater e, apesar de ter corrido bem, levei um raspanete do Mourinho.»
«Jorge Costa é o capitão mais carismático que o futebol português já conheceu»
No entanto, sobre aquele que viria a ser o “Special One”, Ricardo Fernandes tem só elogios a fazer pela forma como revolucionou o jogo: «Há um pré e um pós-Mourinho. Era um treinador à frente do seu tempo, pela forma como preparava o treino e o jogo, como lidava com a parte psicológica dos jogadores, era tudo novo. O sentimento era de que íamos para qualquer jogo e só havia um resultado possível. Quando se empatava era como se tivesse acabado o mundo. Não me acredito que já tenha havido alguma equipa com aquele espírito, com aquela liberdade, mas também com aquela responsabilidade no jogo.»
Para lá de Mourinho, o antigo jogador, agora com 45 anos, salienta outros dois pilares desse inesquecível FC Porto: Jorge Costa e Deco.
«O Jorge fazia toda a diferença não só no balneário como dentro do campo. Para mim, é o capitão mais carismático que o futebol português já conheceu, seja qual for o clube. Nunca teríamos chegado onde chegamos sem a sua liderança.»
Quanto ao “Maestro”, que no tal jogo contra o Lyon espalhou magia, com um golo e uma assistência, é incontornável considerá-lo como «a referência daquela equipa» que em duas épocas venceu tudo a nível nacional e europeu: «O Deco merecia ter sido eleito o melhor jogador da Europa. O Ronaldinho era um mágico, mas a época do Deco sobretudo no ano da Liga Europa foi superior. Era um fora de série.»
Ricardo Fernandes, que em 2003/04 trocou o Sporting pelo FC Porto, deixou o Dragão depois dessa épica época. Vestiu a camisola da Académica antes de emigrar, passando por países como Chipre (APOEL, Anorthosis, AEL, Omonia e DOXA), Ucrânia (Metalurg Donetsk) e Grécia (Panetolikos), até voltar a Portugal para terminar uma carreira em que além da Liga dos Campeões conquistou também uma Liga Portuguesa (FC Porto), duas Supertaças (FC Porto e Sporting), a II Liga (Santa Clara).
Hoje, o ex-jogador, agora proprietário do restaurante Miyuki, no Parque das Termas de Vizela, recorda a epopeia portista com um sabor agridoce.
«Participei um bocadinho nessa Liga dos Campeões, mas poderia e deveria ter participado mais. Não aconteceu por culpa minha. Eu tinha capacidade para fazer mais e a partir de certa altura outros começaram a ganhar terreno. Estive no sítio certo, na hora certa, a assistir da primeira fila», lembra Ricardo Fernandes, salientando que durante anos «nem tinha bem noção do feito»: «Conquistar a Liga dos Campeões com uma equipa portuguesa é algo que muito dificilmente se vai repetir, apesar de todos os anos eu torcer por isso.»
Aquele Porto de Mourinho, que há 20 anos dava mais um passo para a história, haveria de alcançar um dos maiores feitos de sempre do futebol português.
Na segunda mão, um bis de Maniche segurou o empate (2-2) e a passagem às meias-finais, em que os dragões viriam a ultrapassar o Deportivo da Corunha.
O resto foi história, uma página escrita em letras de ouro, que em Gelsenkirchen teria o seu capítulo final.