[Fotos: Hajer FC]

Galveias. Brotense. Elétrico, na II divisão B. A escola do Sporting em Almeirim, nos sub-14. União de Montemor, como treinador e depois coordenador técnico. O Atlético de Reguengos, com um título de campeão no bolso. E eis senão quando empresário fala com empresário, e surge o convite. Das Arábias, de um clube em ascensão, a tentar consolidar-se no primeiro escalão e a pensar na sustentação do futuro a médio prazo com a formação, vem a proposta. O Hajer FC, que acabara de assinar uma parceria com o Celtic de Glasgow, chama João Prates para a sua equipa sub-20.

«A minha primeira reação foi de algum receio», começa por admitir à MFTOTAL o treinador, que procurou informar-se o melhor que pôde antes de tomar um rumo tão drástico na vida e na carreira: «Os objetivos da minha contratação passavam por trazer uma nova mentalidade, acompanhada por uma maior qualidade no futebol jogado, e a formação de jogadores para a primeira equipa. Conversei com José Peseiro, que tinha estado a treinar aqui e ele aconselhou-me a vir.»

Não era uma decisão fácil, mas num dos lados da balança estava o aspeto financeiro, a experiência e a possibilidade de abrir portas maiores para o futuro. «Decidi arriscar e dia 2 de agosto estava a chegar à Arábia Saudita, mais propriamente a Al Asha.» Claro que João Prates não estava à espera de um choque tão grande. Estava preparado, mas ao mesmo tempo não estava. Na verdade, nada podia prepará-lo para mudança tão brusca. «Antes de vir, procurei conhecer melhor a cultura e os hábitos. Falei com quem trabalhava por cá. Sabia que iria ser completamente diferente daquilo a que estava habituado, mas por mais que pensemos que estamos conscientes de tudo quando chegamos sentimos realmente a diferença», explica.


Passaram quase dois meses, mas o técnico lembra-se bem da primeira impressão assim que aterrou na Arábia Saudita. «Devo ter sentido receio e alívio ao mesmo tempo. Estive duas horas à espera para passar no posto de controlo. Senti imediatamente na pele a forma como valorizam em termos de segurança cada entrada no país. Mas ao perceberem que eu era treinador a postura mudou, e senti-me aliviado ao ver que me pediam para tirar fotos com eles. Senti a amabilidade das pessoas nesse momento, numa altura em que nada conhecemos, e confesso que senti um alívio enorme.»

Não era só um choque de culturas que o esperava. «À saída do aeroporto, às três da madrugada, o termómetro marcava 36 graus e humidade elevada.» O mote estava dado para uma nova vida.

O novo clube, um clube ainda novo

O Hajer FC chegou há três épocas ao primeiro escalão, mas as ambições são altas. Para já, tenta crescer a nível da estrutura, apostando em treinadores estrangeiros para as camadas jovens. «Neste momento, tem o escalão sénior, e os de sub-23, sub-20, sub-17 e sub-15. Estou eu nos sub-20, um holandês nos sub-17 e um montenegrino [Nebojsa Jovović] nos seniores. É possível que chegue alguém de fora para os sub-15 também. A estrutura engloba ainda médicos egípcios. O clube estabeleceu uma parceria com o Celtic, no sentido de um dia poder exportar jogadores que possam vingar na liga escocesa e, também muito importante, trocar experiências. No próximo mês, por exemplo, dois jogadores a meu cargo vão estagiar uma semana em Glasgow.»

Há, contudo, um outro projeto-charneira e que poderá realmente potenciar o clube saudita: o novo estádio, que «poderá ser uma referência» não existe nada parecido na Arábia Saudita por englobar uma academia «para acolher jovens e treinadores de outras cidades». Está planeado que a nova arena fique concluída em seis meses, embora nestes casos haja sempre o risco de alguma derrapagem nos prazos.


O local e os planos do novo estádio

As dúvidas que vêm com uma nova realidade

Ninguém esperaria que fosse fácil, nem mesmo o mais otimista dos treinadores. João Prates sabia o que tinha pela frente. Ou pelo menos em parte. «É uma diferença enorme, e surgem-nos muitas dúvidas. Temos de mudar a realidade a que estão habituados, mas se o fizermos depressa de mais pode correr mal. Aqui, começo a perceber que as mudanças ocorrem lentamente. Mas o objetivo do clube é esse: mudar, tornar a mentalidade dos jogadores mais profissional e melhorar a qualidade do treino. Mas isso implica que a mudança seja aceite por quem queremos que mude, e em futebolistas que jogam há três, quatro ou cinco anos no máximo, sem bases, não é fácil.»

Às vezes mudar passa por alterar processos bem simples, como o número de jogadores presentes em cada grupo de trabalho. «Os plantéis aqui são extensos, têm trinta ou mais jogadores, e existem dificuldades para organizar jogos amigáveis. Temos dois e é nesses dois que temos de conhecer esses mais de trinta jogadores. É difícil. Estou a aproveitar a Saudi Cup como pré-época. Os resultados não são importantes, porque o principal objetivo agora é conhecer a realidade competitiva dos jogadores.»

Um europeu tem de se adaptar à influência que a cultura e a religião têm. «Por vezes, o treino é interrompido para que os atletas possam rezar. E a família é muito importante. Um jogador pode faltar aos treinos por questões familiares», recorda, antes de lembrar outras regras, que afetam os próprios futebolistas: «Se um jogador mudar a cor do cabelo não pode jogar. Ou se desenha riscos no penteado.»

E como são os árabes no balneário? Também será um local de contacto tão diferente dos europeus? «Fisicamente, é apenas uma sala onde os jogadores trocam os chinelos pelas botas, porque já vêm equipados de casa, quer seja para o treino ou para os jogos.»

Tempestades de areia e dificuldades de comunicação (com vernáculo incluído)

O calor não é o único problema. Do nada, por vezes, sai um obstáculo difícil de ultrapassar ao trabalho do dia-a-dia. «Uma vez, tínhamos tudo preparado para treinar e começámos a ver ao longe tudo muito escuro. Perguntei o que era e disseram-me que era apenas uma pequena tempestade de areia. Em poucos minutos, estávamos rodeados de areia e pó. Foram alguns minutos, e conseguimos voltar a treinar pouco tempo depois, mas para eles é habitual. Disseram-me que irá acontecer mais vezes.»

Depois, há as dificuldades em fazer-se entender. O inglês não é corrente, os gestos não transmitem tudo, há que fazer chegar a mensagem. «Como todos devem imaginar são poucos que falam inglês. Há apenas dois jogadores que se expressam na língua, tal como o diretor da formação, que estudou nos Estados Unidos. Os adjuntos também falam muito pouco, por isso a minha preocupação é aprender também palavras em árabe, que possa facilitar com os jogadores, durante os jogos, já que algumas vezes sinto que o que pretendo não é compreendido. Expressões com bass the koora (passa a bola), taarak (movimento), mudafa (defende) e defar (defende esse lado) passaram a ser muito úteis.»

Contudo, há palavras que são universais e perigosas. O vernáculo é proibido. «Uma vezes saiu-me um shit! e toda a gente percebeu. Não foi bom.»

Tempestades de areia e dificuldades de comunicação

Chegar para mudar e ser também mudado

«Quando emigramos o nosso primeiro pensamento tem de ser o de nos adaptarmos ao país em que vamos viver. É isso que tenho tentado fazer. Os primeiros dias são difíceis, somos acompanhados pelo receio de cometer uma infração. Tudo aqui é diferente. Existem restaurantes, em separado, para famílias e para solteiros, e depois para homens e para mulheres. Nos centros comerciais, as zonas de atendimento também são diferenciadas», conta Prates, que sente que as pessoas – sobretudo o diretor da formação Salih Almulhim – estão a fazer tudo para que se sinta «como se estivesse em casa». E acrescenta: «Sinto-me bem, o clube dá todas as condições de segurança e estadia. Na cidade, podemos andar à vontade.»

Apesar do sentimento de pertença ir aumentando com o passar do tempo, os cuidados não terminam por aqui. «Temos de ter atenção à roupa. Em alguns sítios não são permitidos calções. As mulheres vestem-se por completo, com um abaia, e não lhes é permitido conduzir.

Aos poucos, procuro conhecer a cidade, o tempo passa-se entre o hotel, o campo de treino, o centro comercial e alguns restaurantes que vamos descobrindo, onde a alimentação é mais parecida com a nossa», afirma.

Um nome em quaquer parte do mundo :)

Posted by João Prates on  Sábado, 19 de Setembro de 2015


As pontes para Portugal não são muitas. No entanto, de vez em quando, estabelecem-se onde e quando menos se espera. «Cristiano Ronaldo é idolatrado aqui, e já vi várias camisolas do Benfica em miúdos em centros comerciais. É bom para quem está aqui sozinho, rodeado de um mundo tão diferente, aproxima-nos de casa. Ainda recentemente publiquei uma foto de um com a camisola do Ronaldo, durante um jogo nosso. Não é muito comum, mas é bom para nós. Aqui o normal é Barcelona, Real Madrid e alguns clubes americanos, porque existem muitos aqui. Foi engraçado porque fizemos um amigável e dois jogadores adversários chegaram vestidos com a camisola de Portugal, e os nomes de Figo e Quaresma nas costas. Há pouco contacto com portugueses, sei que alguns trabalham num hospital daqui, descobri-os através do Facebook.»

União de Montemor:

Atlético Reguengos:

Preletor em ações de formação nas áreas de psicologia do desporto e treino de futebol, formador de treinadores na Associação de Futebol de Évora, idealista, com uma filosofia própria de jogo que pode ser encontrada no Youtube, gravada nos tempos que passou no União de Montemor e no Atlético Reguengos, Prates não esquece a pedagogia mais uma vez. As dificuldades que está a encontrar na Arábia Saudita levam-no a pensar ajudar quem pensa em emigrar para descobrir o sucesso em sítios tão recônditos do planeta.

«Estou a pensar escrever um livro ligando a área da psicologia, ao qual estou ligado, à adaptação a uma nova realidade, porque, em Portugal, estamos cada vez mais dispostos a ir para fora, mas quando chegamos ao destino ficamos surpreendidos por ser tudo tão diferente. É uma ideia que estou a maturar. Tenho escrito, já há algum tempo que penso fazê-lo, e esta experiência é única e diferente. Tentarei certamente a colaboração de outros treinadores portugueses, para que seja uma ajuda ou um guia para quem se proponha a sair.»



O futebol saudita tem capacidade para evoluir?

Com tantas diferenças em relação ao que se passa na Europa, a pergunta que se coloca é se o futebol saudita se pode aproximar de outros, bem mais competitivos. Há duas palavras que sobressaem no discurso do técnico: estrutura e organização.

«Tenho visto os jogos todos aqui em casa. Há qualidade técnica, mas falta intensidade e o calor também não ajuda. A liga tem alguns brasileiros que fazem a diferença. Carlos Eduardo, que jogou no FC Porto, e veio para o Al Hilal está a ter sucesso. No que diz respeito aos mais fortes, o Al Ahli tem bons jogadores, tal como o Al Nassr. Há muito dinheiro, mas a liga só permite quatro estrangeiros e falta continuar a apostar na estrutura e na organização. É fundamental.»

Os estrangeiros têm chegado sob a forma de treinadores e jogadores. «O José Gomes está aqui, a treinar o Al Taawon, que tem nos seus quadros o Ricardo Machado, defesa-central. O Eurico esteve por cá, mas já saiu. No Al Ittihad está agora o Laszlo Bölöni, de quem gostam muito.»

Em clubes, com estruturas muito dependentes ainda de dirigentes locais e com largos anos de casa, a conclusão é de que ainda não chega. Há um longo caminho a percorrer. «Estamos aqui para ajudar», conclui João Prates.

O grupo de trabalho