Não é propriamente uma novidade, mas os grandes clubes parecem estar a perceber que é sobretudo uma chatice: as crianças já não jogam na rua, e com isso perderam uma série de características que só se encontram no pânico de ser o último a ser escolhido e por isso ter de ir à baliza. Que só se encontram no futebol malandro, no fundo.

Ora o mundo moderno, cheio de estradas, prédios, avenidas e túneis, mais uns quantos sintéticos e pavilhões, afastou os miúdos da rua e levou-os para as escolas de formação.

Nas grandes cidades, e sobretudo nos bairros menos desfavorecidos, é difícil encontrar crianças que tenham aprendido a jogar num campo desnivelado, com duas pedras a fazer de baliza e apenas uma regra: o jogo só acaba quando a mãe chamar para jantar.

Os miúdos de hoje crescem a jogar futebol em sintéticos ou relvados, sem falhas, sem buracos, sem desníveis, com supervisão e orientação, mais regras, tempo cronometrado, sapatilhas de marca e equipamento lavado. O que não é necessariamente bom.

O Ajax, por exemplo, já percebeu que não é bom os miúdos não jogarem na rua.

«Quando uma criança joga na rua e cai, magoa-se: e muito. Por isso, quando cai uma vez, o cérebro dela vai criar mecanismos de defesa para não cair outra vez. Esses mecanismos têm que ver sempre com espaço», explica Ruben Jongkind ao Maisfutebol.

Ruben Jongkind, refira-se, é diretor do departamento de desenvolvimento do talento do Ajax e diretor da Universidade Cruijff, em Amesterdão.

«Por que têm a ver com o espaço? Simples: porque quando ela entra em contacto físico, corre o risco de cair. Por isso, e para evitar o contacto físico, tem de criar espaço, tem de fugir ao confronto com os outros jogadores. Isso é muito importante, porque no futebol decisivo é fundamental saber criar espaço.»

Ou seja, quando joga na rua, a criança controla a bola fugindo ao contacto com o adversário, para evitar um encontrão que a atire ao chão: porque isso vai magoá-la.

Mas há mais.

«Em segundo lugar, a superfície é diferente, não é lisa ou plana. Pode haver por exemplo uma pedra mais levantada ou pode o terreno ser desnivelado», referiu Ruben Jongkind.

«Por isso a bola faz movimentos que não podes prever, o que obriga a adaptar na tua cabeça ferramentas de controlo da bola. A imprevisibilidade obriga as crianças a desenvolverem mais mecanismos técnicos. Isso chama-se motor learning e é uma coisa que não se aprende nos relvados, que é nivelado, igual, direitinho.»

Ora por isso, porque há recursos técnicos que só se adquirem na rua, a Universidade Cruijff defende que as crianças entre os 7 e os 12 anos devem jogar na rua.

O Ajax já o faz há alguns anos, levando uma vez por semana os miúdos dos escalões de formação entre os 7 e os 12 anos para fora de campo: pode ser para uma rua, pode ser para um parque de estacionamento, pode ser até para um jardim público.

A esse treino semanal chamam-lhe jogo espontâneo.

«Levamos os miúdos para a rua, damos-lhe uma bola e deixamo-los à vontade. Não intervimos no jogo, ficamos só a observar à distância», conta Ruben Jongkind.

Mas há mais: nesses jogos espontâneos, por exemplo, não se definem posições e misturam-se crianças de idades diferentes, que habitualmente não jogam juntas.

«Isso permite-nos perceber o nível de liderança dos mais velhos. Como organizam os jogadores mais novos? Quem tem características de líder? Quem é mais seguro de si?»

Como já se disse, o Ajax há alguns anos que faz este treino com os miúdos da formação, o Barcelona vai começar a fazê-lo agora: são no fundo as duas escolas de formação que trabalham mais próximas dos conceitos da Universidade Cruijff. O diretor Ruben Jongkind acredita no entanto que no futuro mais clubes farão o mesmo.

«No entanto é importante que se perceba que este treino só faz sentido até aos 12 anos, porque é até essa idade que se apreende a maior parte da habilidade técnica.»

A Universidade Cruijff aconselha que até aos 12 anos a formação se concentre na habilidade técnica e a partir dessa idade se concentre no desenvolvimento técnico-tático. Os conceitos estratégicos, por exemplo, só fazem sentido depois dos 13 anos.

«Há uma parte do cérebro que é responsável por entender os conceitos abstratos, que é o neo-cortex. Fica na parte frontal da cabeça. É uma parte que se desenvolve muito entre os 12 e os 14 anos. Por isso não vale a pena tentar dar conceitos abstratos a crianças, não vão fazer efeito», referiu Ruben Jongkind.

«A partir dos 13 anos é que o jovem tem capacidade para reter esses conceitos abstratos, portanto a partir daí é que se podem trabalhar os aspetos técnico-táticos.»

No fundo, portanto, é importante deixar as crianças livres para aprender, para explorar, para serem elas próprias, numa primeira fase. A partir da adolescência, é tempo de aperfeiçoar o que descobriram antes, através da disciplina e do rigor.

«O Eriksen, por exemplo, chegou ao Ajax com 16 anos e excelente qualidade técnica, mas com um grande problema: quando corria, batia primeiro com o calcanhar no chão», recorda Ruben Jogkind.

«Durante quatro meses fizemos um trabalho com ele para mudar a forma de correr. Ficou vários jogos sem jogar e isso foi mau para a equipa, mas para nós não é importante ganhar: importante é o jogador. Em quatro meses deixou de pisar com o calcanhar para pisar com a planta do pé. A partir daí ganhou velocidade e ganhou resistência. Curiosamente foi o jogador que mais correu na Liga dos Campeões 2011/12.»

No início, porém, está sempre a liberdade de criação: e agora outra vez o futebol de rua. Numa espécie de regresso às origens, e aonde tudo começou afinal.

Palavra da Universidade Cruijff.