«A vida é injusta.» Se há alguém com autoridade moral para assinar esta sentença, esse alguém é Guilherme Giudice. O treinador da equipa de futebol feminino do Santos levou pancada atrás de pancada nos últimos 24 meses, suportou tudo, caiu e levantou-se, está vivo e de boa saúde para contar.

O relato é, de resto, sufocante. Cruel. Nos últimos meses de 2018, Guilherme ficou a saber que a mãe tinha cancro de mama e que o pai lutava contra um cancro de pele. Duro, não é? Preocupação, medo, angústia, pessimismo. Guilherme Giudice sentiu tudo, viveu tudo.

As coisas estavam mal mas, como defendia o bom do Murphy na sua Lei, não há nada de mau que não possa piorar ainda mais. Assim foi. Poucas semanas depois, durante um duche matinal, Guilherme Giudice sentiu um nódulo num dos testículos. Esperou uns dias, consultou um médico, fez exames e recebeu a notícia que ninguém quer receber: tumor maligno.

No Santos as coisas também não corriam bem. «Eu estava saturado. Havia dias em que não tinha vontade de me levantar da cama para ir aos treinos. Eu não sei onde ia buscar forças», desabafa o treinador das Sereias da Vila, ao UOL.

Guilherme passou de adjunto a treinador principal precisamente nesse período. Doente, sem força, foi convidado a assumir o comando técnico do Santos. A oportunidade era «incrível» e Guilherme decidiu «arriscar e aceitar». Mal sabia que dias ainda mais duros se aproximavam.

Um papo na zona do pescoço e mais medo

Nos primeiros tempos, só a esposa e o adjunto de Guilherme no Santos tinham conhecimento da luta que o treinador travava. Guilherme, sem saber bem como, dividia-se entre os exames médicos, os treinos no Santos, o acompanhamento da mãe (o pai foi operado e recuperou depressa) e a família.

Em outubro de 2019, Guilherme foi operado pela primeira vez. O procedimento correu bem, mas a equipa médica disse que o paciente teria de ser constantemente monitorizado e acompanhado de perto.

Para afastar os maus pensamentos e entrar em 2020 de pé direito, Guilherme e a mulher agendaram uma viagem com amigos pela Europa na altura entre o Natal e a Passagem de Ano. Dois dias antes do embarque, e novamente no duche, Guilherme Giudice sentiu um papo na zona do pescoço.

Guilherme, já recuperado, com duas das Sereias da Vila 

Sim, infelizmente um raio pode cair duas vezes em cima da mesma pessoa. «Procurei um médico no mesmo dia, mas não disse nada à Erica [esposa]. Íamos viajar dois dias depois. Mas como é que eu ia esconder uma coisa destas da pessoa que melhor me conhece? Ela viu-me apreensivo, com a mão no pescoço e descobriu tudo.»

Guilherme, Erica e os amigos viajaram para a Europa com uma data na cabeça: 15 de janeiro de 2020. Nesse dia, o treinador das meninas do Santos sabia que teria de passar por mais um batalhão de exames.

«Fomos ao Coliseu de Roma, estivemos no Roma-Juventus e, como bom brasileiro, fui multado por querer chegar demasiado perto da Torre de Pisa. A viagem foi boa, mas tive de contar aos nossos amigos o que se estava a passar, porque eram demasiados dias em grupo.»

Oito mil pessoas e uma vitória no dia da primeira quimioterapia

15 de janeiro. Guilherme faz os exames necessários e recebe uma notícia terrível. Capaz de desafiar a resistência do mais bravo dos humanos. O treinador não tinha um tumor maligno, mas quatro no total: um no pescoço, um na zona dos rins, um no diafragma e um entre os pulmões.

«Eu devia ter ficado preocupado, mas nessa altura andava entusiasmado com a minha equipa, as contratações e o início do campeonato. Só não sabia como e quando contar tudo isto às meninas. Elas tinham de saber o que se passava comigo, porque eu iniciaria um ciclo de quimioterapia e, provavelmente, seria obrigado a faltar a treinos e jogos.»

Antes de um treino feito na cidade de Manaus, Guilherme Giudice decidiu que esse era o momento certo. «Foi muito triste, muitas delas choraram», recorda o treinador das Sereias da Vila, a alcunha que acompanha a equipa de futebol feminino do Santos.

O primeiro ciclo de quimioterapia coincidiu com o primeiro jogo do ano de 2020, 17 de fevereiro. Guilherme acordou, foi fazer o tratamento e depois seguiria para a partida. O treinador desconhecia as consequências dos efeitos secundários da medicação.

«Fui ingénuo», assume agora, oito meses depois. «Não me queriam deixar ir para a Vila Belmiro, diziam que a imunidade do corpo estava baixíssima, que eu me sentiria muito fraco… bem, eu tinha mesmo de ir e duas das minhas jogadoras foram buscar-me ao hospital. E eu fui.»

Oito mil pessoas nas bancadas, vitória por 2-0 e uma explosão de emoções no balneário. «Que dia! O balneário chorou, chorou muito. O meu adjunto também rapou o cabelo, em solidariedade, tudo me parecia a melhorar. Infelizmente, a semana seguinte de quimioterapia foi péssima. Horrorosa.»

Picanha, cerveja e The Last Dance para recuperar

Cansaço extremo, fraqueza, enjoos. Guilherme Giudice aguentou os danos colaterais da quimioterapia e foi dar os treinos de preparação para a o jogo contra o Grémio. «A minha equipa técnica ajudou-me, andou sempre com um guarda-sol para me proteger. No final de um dos treinos fui para casa, adormeci e quando acordei estava cheio de febre.»

A imunidade de Guilherme baixou para níveis preocupantes e o treinador do Santos teve de voltar a ser hospitalizado. Ficou em isolamento, ainda antes de a pandemia ser mundial. «É verdade, fiquei cinco dias no hospital e treinei para o distanciamento imposto pela covid-19. Nessa altura eu já andava com máscara o dia todo», conta Guilherme Giudice.

Quatro ciclos de quimioterapia feitos, Guilherme fechado em casa por culpa da pandemia. Mais debilitado, o treinador recebeu uma ordem médica. 

Muita picanha e cerveja. Eles obrigaram-me a comer carne vermelha. Agora brinco com isso, mas essa foi a pior fase. Eu sentia-me muito em baixo, sem forças. Passava os dias na cama, a ver o The Last Dance, o documentário do Michael Jordan, e as séries Last Kingdom e Vikings.»

Estava na hora de voltar a fazer exames e de saber se a quimioterapia tinha resultado. A ansiedade não podia ser maior.

A recuperação e uma goleada por 5-0

«O médico abriu a porta, mandou-me sentar e ouvi isto tudo. Os tumores dos rins, do diafragma e dos pulmões tinham desaparecido. O do pescoço continuava lá, mais pequeno. Fiz uma biópsia e o tecido restante era, afinal, benigno. Que alívio!»

Guilherme Giudice derrotou cinco cancros – não se esqueçam o dos testículos. Saiu para a rua, gritou e abraçou-se a quem passava. Comeu picanha, bebeu umas cervejas e exagerou no chocolate. O dia era de festa.

A possibilidade de recair é «baixa, muito baixa». Voltou aos treinos com as Sereias e a viver o futebol com intensidade, mesmo em tempos de pandemia.

A mãe, dona Beth, também está recuperada. Retirou uma mama, terminou a radioterapia e fará uma reconstrução do seio em breve. Na palestra do jogo contra o Audax, em setembro, Guilherme deu a boa nova a todas as meninas. O balneário voltou a chorar.

«Vencemos 5-0 e lancei no jogo uma menina de 17 anos. Estreou-se e marcou um golo. A partir de agora sinto-me preparado para qualquer raio que volte a cair em cima de mim.»

Hora atualizada: artigo orginalmente publicado a 14-10-2020, 23h49