Sp. Braga e Estoril jogam uma final inédita da Taça da Liga, mas esta não é a primeira vez que se encontram na decisão de um troféu. O jogo deste sábado trouxe à memória uma competição esquecida. Chamou-se Taça Federação Portuguesa de Futebol, decidiu-se a 30 de junho de 1977, em Coimbra, o Sp. Braga venceu por 2-0 e levou a taça para casa. É a única que existe, porque a prova, que tinha um formato semelhante à Taça da Liga, não voltou a repetir-se. Esta é a sua história, contada por quem a viveu, a recordar bons tempos, boas amizades e duas equipas com grande espírito. Em campo a coisa até aqueceu e meteu uma ameaça de morte, mas o que fica são muitas histórias,  grandes memórias e muitas gargalhadas.

«Nós na altura não tínhamos muita noção do que aquilo era. Sabíamos que era uma prova extra, nunca pensámos que era a primeira e única vez que se disputava. E hoje quando se fala nela quase ninguém se lembra e temos de lembrar às pessoas que houve e que nós ganhámos. Eu sei porque estava lá…» António Fidalgo era o guarda-redes do Sp. Braga e sorri enquanto procura repescar memórias com 47 anos.

«Da final lembro-me que foi em Coimbra, à noite. Tinha amigos do outro lado também. Jogava lá o Torres, jogava o Fernando Santos, o Amílcar… Malta que eu conhecia de Lisboa.»

«O Caio Cambalhota acabou a dizer que lá fora me matava»

Jogavam, sim. Torres, o «Bom Gigante» que já foi treinador-jogador nessa época, mais o futuro selecionador que faria de Portugal campeão da Europa. E Amílcar. Amílcar Fonseca, defesa central sem medo de meter o pé e sem papas na língua. As memórias dele também entram nesta conversa com o Maisfutebol, diretas à final. «Desse jogo as lembranças que tenho é que foi uma coisa espetacular para nós, irmos a uma final. Do jogo em si lembro-me que chateei tanto a cabeça ao Caio Cambalhota, que era um excelente jogador, que ele acabou a dizer que me matava lá fora.»

Caio Cambalhota marcou o primeiro golo do jogo, o segundo foi de Carlos Garcia. Disso Amílcar não se lembra. «Não me lembro dos golos», ri-se. «Isso já foi quê, em 1977? Lembro-me de termos ido a Coimbra e do jogo lembro-me porque tive esta picardia com o Caio Cambalhota.

«Eu só dava porrada.» Mais uma gargalhada. «Tinha de fazer alguma coisa, se não não jogava, não é? Os outros jogavam e eu dava umas mocadas neles.» Então, aplicou o seu método com Caio Cambalhota, o avançado brasileiro que chegou nessa época a Portugal para o Braga e havia de voltar no início dos anos 80 para jogar em vários clubes.

«Eu se não ia a bem ia a mal. Então, chamei-lhe tudo», continua Amílcar. Então e o que aconteceu quando chegaram lá fora? «Não aconteceu nada. Isto é no calor do jogo e depois é um abraço e acabou. Até amanhã, parabéns. Nesse campo o futebol é extraordinário. É o que hoje acontece também. Mas é tudo lá dentro. Quando acaba o jogo acaba tudo. Era o que faltava. É uma disputa muito violenta verbalmente, é uma competição que nos leva a esse ponto, mas depois o árbitro apita para acabar o jogo e acabou. Pelo amor de Deus, só as pessoas mal formadas é que não percebem isso.»

Fidalgo sorri a ouvir a história. «O Caio Cambalhota era terrível. Mas o Amílcar também não lhe ficava atrás. Estavam bem um para o outro. Não me lembro dos pormenores mas consigo imaginar a luta entre os dois…»

A festa de Coimbra a Braga e uma jantarada no fim

Caio Cambalhota começou a decidir a final para o Sp. Braga aos 18 minutos. E em cima do intervalo Carlos Garcia fez o golo que selou o resultado. O antigo jogador recordou esse golo para os canais do Sp. Braga em 2021, por ocasião do centenário do clube, contando que se tinha lesionado dias antes no pé esquerdo, que nem era o seu melhor pé, mas a recuperação com o fisioterapeuta do clube e uma injeção fizeram o milagre: «Foi uma recarga, cruzamento da direita do Chico Faria, o guarda-redes defende e eu faço a recarga com o pé esquerdo. Olha, grande anestesia que tive.»

Esteve muita gente no estádio, recordam. «Estava muita gente a ver o jogo. O Braga não tinha o entusiasmo que tem hoje. Hoje assume-se como candidato ao título e muito bem. Na altura não, não tinham esse estatuto. Mas lembro-me que estava muita gente. E estava muita gente do Estoril também», diz Amílcar.

No fim, a festa foi minhota e durou até Braga. Na viagem, com os adeptos a acompanharem o autocarro da equipa. «Fomos até Braga numa grande festa no autocarro, como é lógico. E os adeptos vieram em festa de Coimbra para cima», recorda Fidalgo. E acabou com uma jantarada, madrugada dentro: «Chegámos lá e fomos comer para casa de um jogador, acho que foi o Chico Faria. Fomos comer umas cabidelas…»

Patrocínio do Totobola e 500 contos de prémio

O percurso até chegar a Coimbra foi intenso. A Taça FPF jogou-se toda no mês de junho, depois de terminado o campeonato, com uma fase de quatro grupos com quatro equipas e seis jogos cada uma, seguida das meias-finais e da final. E teve aliás três níveis de competição: na primeira Liga, mas também na II Divisão, com vitória do Barreirense, e na III, ganha pelo Bragança.

Não era a primeira nova competição que a Federação tentava lançar, como observa o investigador João Nuno Coelho: «Durante os anos 60 e início dos anos 70 houve uma competição que era a Taça Ribeiro dos Reis, também com organização da Federação, mas penso que não havia obrigatoriedade de as equipas participarem e penso que foi isso que fez com que a competição não fosse oficial e hoje não faça parte dos títulos oficiais.»

Fotograma do vídeo do centenário do Sp. Braga

O processo terá sido semelhante com a Taça FPF, em 1976/77. Tinha patrocínio do Totobola, contava o Diário de Lisboa no lançamento da competição, escrevendo ainda que a Federação «estava na disposição de requerer às instâncias competentes» que o vencedor tivesse acesso à Taça UEFA. No fim de contas, só durou aquela época. Não terá gerado grande entusiasmo, também a avaliar pela repercussão mediática. O mesmo jornal, por exemplo, reservou apenas uma notícia breve para a final entre Braga e Estoril, para mais sem nenhum dos chamados «grandes», que falava de um encontro «disputado com grande correção, mas quase a passo…»

Essa notícia também dizia que o Braga «embolsou o prémio de 500 contos», além do troféu. 2500 euros, muito dinheiro para aquele tempo. Disso não se recorda Fidalgo, nem se houve algum prémio extra para os jogadores pela conquista: «Para o clube talvez, não me lembro. Mas 500 contos naquela altura era muito, era o que ganhavam os melhores jogadores num ano.»

Sp. Braga, da final da Taça perdida nas Antas à vitória sobre o FC Porto

Antes da final, tal como na época atual, tanto Sp. Braga como Estoril deixaram os «grandes» pelo caminho. «A prova foi no final do campeonato, não sei por que surgiu e sei que durante o percurso para nós, Sp. Braga, houve aliciantes extra. Na fase de grupo jogámos com o V. Guimarães, que sempre foi o grande rival do Braga, e conseguimos passar às meias-finais, indo ganhar a Guimarães. Depois calhou o FC Porto e ganhámos também ao FC Porto.»

Foto Facebook António Fidalgo

Naquela época, o Sp. Braga tinha chegado também à final da Taça de Portugal, perdida precisamente para o FC Porto. «Essa final teve uma particularidade, foi jogada no Estádio das Antas. Nós nunca compreendemos o porquê da decisão, mas foi. Perdemos 1-0 nas Antas. Desse eu lembro-me bem», diz Fidalgo: «Foi o Gomes que marcou, o meu saudoso e grande amigo Fernando Gomes. O cruzamento tinha sido do Seninho, outro amigo meu.»

Quando chegou a Taça FPF, a história foi diferente. O Sp. Braga venceu por 3-1 o FC Porto de José Maria Pedroto, com as principais figuras em campo. António Oliveira, Otávio, Seninho, Fernando Gomes. Chico Gordo, Chico Faria e António Pinto marcaram os golos do Sp. Braga, Oliveira assinou o único golo portista.

O Estoril também bateu o peito a gente ilustre. Venceu em casa Benfica e Sporting e empatou na Luz e em Alvalade para terminar em primeiro a fase de grupos, que contava ainda com o Belenenses. Na meia-final venceu o Atlético.

Chegou então a final, um momento alto para os dois clubes, ambos ainda sem a dimensão atual. O Sp. Braga tinha subido à Liga apenas um ano antes, depois de cinco temporadas longe do primeiro escalão. «Ainda não era o Braga que é hoje, não tinha a capacidade de afirmação que tem hoje», diz Fidalgo. Mas a época, que terminou com o oitavo lugar no campeonato, foi positiva: «Fomos à final da Taça de Portugal, ganhámos essa Taça Federação. Não é todos os anos que o Braga vai a duas finais.»

Foi particularmente boa também para Fidalgo, que tinha deixado o Benfica e a sombra de Bento para tentar ter mais oportunidades de jogar e recorda aquela como uma das melhores épocas da carreira: «Eu não estava habituado a jogar de forma tão sequencial como joguei no Braga. Correu-me muito bem. Nessa época fui o guarda-redes mais pontuado do campeonato. O jornal A Bola atribuía pontos em todos os jogos aos jogadores. E eu acho que fiquei em segundo. Fui o melhor guarda-redes, nessa lógica.»

Daquele tempo, Fidalgo recorda sobretudo o bom ambiente na equipa, que teve no banco Mário Lino e depois Hilário, o antigo «Magriço» e histórico lateral do Sporting, que estava no banco na final em Coimbra: «Tínhamos uma relação muito próxima. Quando ouço dizer que as equipas são como as famílias, naquele tempo é que era mesmo uma família. Vivíamos quase o dia a dia todo juntos. E tanto o Hilário como o Mário Lino faziam parte da família.»

«O clube não pagava e andávamos todos a rir»

De Braga ao Estoril, Amílcar também recorda um grande espírito. «Aquilo era um clube único. Não pagava e andávamos todos a rir. Tínhamos um ambiente espetacular. Único.» Como assim? Assim, com mais umas gargalhadas pelo meio: «Naquela altura, em dia de jogo, havia uma janela que dava para ver as bancadas e a nossa preocupação era ver quantas pessoas estavam nas bancadas para ver se recebíamos algum dinheiro. De vez em quando íamos à janela: ‘Epá, estão mais quatro. Olha, mais cinco.’»

Além do espírito, havia ali qualidade. «Era uma equipa muito boa», diz Amílcar, que segue por ali fora a desfiar memórias e risadas. Como era o Fernando Santos central? «Eu corria e ele ficava lá atrás a dar ordens. Eu é que andava sempre a correr de um lado para o outro.» E José Torres, já então quase quarentão, que foi titular na final? «O Torres jogava sempre. Era treinador, jogava sempre. Ele é que fazia a equipa.»

Foto Facebook Amílcar Fonseca

De Torres, o Magriço e o selecionador que sonhou até ao Mundial 86 e que nessa época, depois da saída de António Medeiros, assumiu pela primeira vez como treinador-jogador do Estoril, em parceria com José Bastos, ficam tantas histórias. Amílcar tem mais uma: «Quando íamos jogar fora a malta olhava para o Zé, à espera que ele desse a tática, e ele dizia: ‘Pá, hoje vai ser diferente. Hoje a tática vai ser TM. Tudo ao monte. E Fé em Deus. Vamos embora, vamo-nos ajudar uns aos outros’. Era a tática.»

Amílcar jogou seis anos no Estoril, em dois momentos diferentes, foi homenageado há pouco tempo pelo clube. Jogou antes disso no Oriental, depois no Belenenses, no Portimonense, no Estrela da Amadora. Mas a Amoreira era especial, diz: «O Estoril tinha uma coisa que nenhum clube tinha em Portugal. Tínhamos uma aceitação a nível nacional. Porque eramos um clube simpático, que vivia com muitas dificuldades, e a verdade é que nós dentro do campo dávamos as mãos e separávamos isso tudo. Nisso é único. Não conheço, pelo que ouço falar dos meus colegas, não conheço nenhum clube como era o Estoril. Foi um clube que me marcou muito. Vivi anos espetaculares no Estoril.»

Foto Facebook Amílcar Fonseca

Por tudo isto, Amílcar está feliz pela presença do Estoril na final da Taça da Liga desta época. «Eu tenho uma costela do Benfica, mas fiquei muito contente. E concordo plenamente com as declarações do treinador do Estoril. As pessoas têm a mania de falar na sorte só dos mais pequenos, mas a sorte faz parte do futebol. O Estoril desde que começou o jogo até que acabou foi sempre à procura da sorte e mereceu a sorte que teve», diz: «É um momento extraordinário. Não nos podemos esquecer que o Estoril eliminou o Porto e o Benfica. Portanto, é mais que merecido que o Estoril esteja naquela final, e que tenha sorte na final.»

António Fidalgo vai estar mais dividido, ele que depois do Sp. Braga voltou ao Benfica, jogou no Sporting, acabou a carreira precisamente no Estoril e começou o percurso de treinador na Amoreira: «Os dois clubes dizem-me muito. Vou estar ligado ao jogo com as emoções muito divididas.»