Eden Hazard pôs o ponto final na carreira. Tem apenas 32 anos, mas na prática o percurso de Hazard ao mais alto nível já tinha terminado, arrastando-se para o fim na passagem sem glória pelo Real Madrid, onde chegou como o jogador mais caro de sempre do clube. Mas esses últimos anos não apagam a memória do mago de pés de veludo que encantou o mundo com aquele jeito descontraído, a dar ideia de que tudo acontecia sem esforço. Simples e brilhante.

Roberto Martínez, que viveu uma era de ouro com ele na Bélgica, resumiu assim Hazard: «Tem tanto talento. Nasceu para jogar futebol. É uma daquelas pessoas de quem se vê imediatamente que não é um trabalho, não é uma tarefa ou algo em que ele tenha de suar para fazer a diferença. Tem talento natural. Depois tem aquela maravilhosa qualidade humana, ilumina uma sala onde entre.»

Martínez falava assim sobre o capitão da Bélgica antes do arranque do Mundial do Qatar, quando Eden já era notícia pela falta de rendimento, ou por parecer ter peso a mais. «Ele pode ter maus jogos e momentos em que não está no seu melhor. As pessoas dizem que é por causa da forma física ou porque tem demasiada gordura corporal. Bem, ele tem a mesma gordura quando faz a diferença», disse então o atual selecionador português ao Talksport.

Muito antes disso, Hazard foi o fenómeno que se revelou no Lille, o mago que encantou Inglaterra com a camisola do Chelsea e a grande referência da geração de ouro da Bélgica que chegou ao terceiro lugar no Mundial 2018. Foi o miúdo que nasceu com a bola nos pés. Quase literalmente, numa família que respira futebol. O pai era jogador e a mãe também.

«Já marcava golos antes de nascer»

«O Eden já marcava golos antes de nascer, graças a mim», contou em tempos ao Le Parisien Carine, que deixou de jogar quando estava grávida de três meses de Eden.

Com um campo ao lado de casa, o futebol sempre fez parte da vida da família Hazard. O primeiro a destacar-se foi Eden, o mais velho, antes dos irmãos Thorgan – o carrasco de Portugal no Euro 2020, hoje com 30 anos e de volta à Bélgica para jogar no Anderlecht -, e Kylian, que tem 28 anos e está no Molenbeek.

O talento de Eden cedo foi óbvio e ainda não tinha seis anos quando começou a jogar num clube local, o Stade Brainois. Era especial, contou um dos seus primeiros treinadores, Jose Authom, ao Le Parisien: «É um sobredotado, sabia fazer tudo. Não tinha nada para lhe ensinar. Não devia dizer isto, mas era quase problemático tê-lo no meu grupo. Enquanto ele dava 500 toques seguidos com a bola, os outros não passavam dos dez.»

Talento e glória de Lille a Londres

Eden mudou-se aos 12 anos para o Tubize, um clube maior ainda perto de casa, onde o Lille o descobriu. Passou então a fronteira para crescer na formação do clube francês. Estreou-se na equipa principal aos 16 anos e na época seguinte, 2008/09, passou a ser uma certeza. Em quatro temporadas, foi eleito duas vezes melhor jovem da Ligue 1 e outras tantas melhor jogador. Foi a figura da conquista da dobradinha do Lille em 2010/11, o campeonato e a Taça de França a consolidarem o estatuto de um jogador que ficará sempre ligado à história do clube. Pelo talento e pelos golos. Quando em 2020 o Lille promoveu uma votação para o melhor golo do século do clube, os dois finalistas tinham a assinatura de Hazard.

Já tinha a Europa toda de olhos postos nele. E no verão de 2012 cumpriu um sonho de sempre, o de jogar na Premier League. Com a camisola do Chelsea, viveu sete temporadas memoráveis, coroadas com grandes momentos e uma mão cheia de títulos. Venceu uma Liga Europa a abrir e outra a fechar a passagem por Inglaterra, pelo meio foi campeão inglês em 2014/15, com José Mourinho no banco, quando recebeu o troféu de melhor jogador da época atribuído pelo Sindicato de jogadores. Em 2016/17 voltou a festejar o título da Premier League.

No dia em que ele se despediu, o Chelsea e a Premier League fizeram questão de recordar o génio «que dava a impressão de poder fazer qualquer coisa com uma bola nos pés».

Pelo meio, tornou-se referência na seleção da Bélgica ao longo de mais de uma década. Desde a estreia, em 2008, somou 126 internacionalizações e marcou 33 golos – o segundo melhor marcador de sempre dos «Diabos Vermelhos», atrás apenas de Lukaku. Jogou três Mundiais e dois Europeus, foi a grande referência da geração que chegou ao topo do ranking da FIFA e que atingiu o seu pico na Rússia, em 2018. Eleito segundo melhor jogador do Mundial, atrás de Luka Mdric, Hazard foi gigante na vitória sobre o Brasil (2-1) nos quartos de final, naquele que definiu como o melhor jogo da sua carreira.

Nem sempre foi consensual e mesmo com a camisola da Bélgica passou por momentos críticos, entre acusações de falta de empenho. Como aquele em 2011 quando, depois de ser substituído frente à Turquia, saiu do estádio e foi fotografado a comer um hamburger enquanto o jogo ainda decorria. O então selecionador, Georges Leekens, chegou a suspendê-lo para os jogos seguintes, mas Hazard acabou por ser reintegrado.

Mourinho: «Um jogador fantástico com péssimo treino»

Essa imagem de aparente displicência acompanhou sempre Hazard, o jogador que, contam muitos dos que se cruzaram com ele, não dava grande importância aos treinos. «É um jogador fantástico com péssimo treino. Podem imaginar o que ele seria com uma atitude super profissional no treino», disse dele José Mourinho em 2021 ao Talksport.

«É um miúdo fantástico, um incrível homem de família, parece não pertencer a esta geração de jogadores», continuou o treinador português, «mas entra no campo todas as manhãs e não trabalha muito. No campo não se vê o reflexo da semana de trabalho, vê-se o reflexo do talento.»

«Quando ele foi para o Real Madrid, pensei: ‘Uau, agora ele vai para o maior clube do mundo e vai sentir enorme pressão para estar no topo, este tipo vai ser Bola de Ouro’», disse ainda Mourinho.

Não foi assim. Hazard chegou a Madrid em 2019, depois da saída de Cristiano Ronaldo, numa transferência de mais de 100 milhões de euros. Mas uma lesão no tornozelo logo em novembro, num jogo da Liga dos Campeões com o PSG, condicionou todo o seu percurso. Seguiram-se várias operações e um progressivo apagamento, a coincidir também com a ascensão de novas referências no clube merengue, como Vinicius. Entre críticas à atitude de Hazard e uma relação distante com Carlo Ancelotti, a estrela do belga apagou-se. Tudo somado, fez 76 jogos em quatro épocas pelo Real Madrid.

Rescindiu com o Real Madrid no final da época passada, já depois de ter terminado também a carreira internacional. No Mundial do Qatar, foi titular nos primeiros dois jogos e saiu do banco nos minutos finais do nulo com a Croácia que ditou a eliminação da Bélgica na primeira fase. Ainda se deu a si próprio um período de espera, a ponderar soluções para o futuro, mas acabou mesmo por decidir que estava na altura de levar uma vida normal.

«O futebol é um mundo incrível, mas impede-nos de fazer muitas coisas», disse Hazard num documentário sobre a seleção belga divulgado em setembro: «Viajar, estar lá para os filhos, muitas coisas que não tive oportunidade de fazer. Quero aproveitar esses momentos, com os meus amigos, com a família. E com algumas cervejas.»