Os Jogos Olímpicos de Paris chegam num cenário geopolítico muito tenso e a competição deste verão vai necessariamente refleti-lo. Como aconteceu no passado. Os Jogos Olímpicos foram sempre um espelho da realidade geopolítica e a história está repleta de momentos em que ela se traduziu em boicotes, assumidos por países isolados ou em bloco, ou por exclusões.

A suspensão da Rússia e da Bielorrússia pelo Comité Olímpico Internacional (COI), permitindo a participação de atletas desses países, mas como independentes, é para já a principal consequência desportiva da atual realidade internacional em Paris 2024. A invasão da Rússia pela Ucrânia em 2022 motivou uma sucessão de sanções, mas o COI acabou por abrir caminho a essa solução.

A decisão foi contestada por vários países, a começar pela Ucrânia, que recentemente emitiu uma série de recomendações aos seus atletas no contacto com os representantes de «nações inimigas». Mantêm-se exclusões aos atletas russos e bielorrussos por parte de várias Federações, incluindo o atletismo ou a ginástica, pelo que a sua representação será muito mais reduzida do que em edições anteriores. Estima-se que sejam no total pouco mais de meia centena.

A Rússia, recorde-se, já teve presença limitada nas últimas três edições dos Jogos, somando verão e inverno, decorrente das acusações de ter promovido durante anos uma política estatal de dopagem. Nos Jogos de Tóquio, em 2021, os atletas russos não competiram sob a sua bandeira, mas sob a designação ROC, que significava atletas do Comité Olímpico Russo. Eram ainda assim 330, dez vezes mais do que aqueles que estarão em Paris.

Além da questão russa, o conflito Israel-Hamas e a situação limite na faixa de Gaza marcarão também estes Jogos Olímpicos. O COI excluiu liminarmente a hipótese de exclusão de Israel, defendida por muitos no mundo árabe mas também em manifestações em vários países, incluindo a França. «Isso não está em questão», disse Thomas Bach, o presidente do organismo, rejeitando comparações entre Israel e a Rússia.

A questão palestiniana faz aumentar as preocupações com a segurança nos Jogos, já com uma operação de enormes dimensões em marcha. E os atletas israelitas terão proteção especial. Na verdade, isso acontece desde Munique 1972, quando um atentado terrorista vitimou 11 membros da delegação israelita em plenos Jogos Olímpicos. «Desde o ataque hediondo à equipa de Israel, houve sempre medidas especiais em relação aos atletas israelitas», disse Bach, acrescentando que «o mesmo acontecerá em Paris, Marselha ou onde houver representação israelita».

A Palestina, apesar da situação dramática que atravessa, terá também representação nos Jogos. Está em vista a presença de apenas seis a oito atletas, mas o COI garantiu que, mesmo sem marcas de qualificação, haverá convites a atletas palestinianos.

O cenário atual é muito complexo, como admitem os responsáveis pela organização dos Jogos de Paris. «É verdade que o contexto internacional é particularmente tenso atualmente», disse Tony Estanguet, antigo campeão olímpico e presidente do Comité Organizador.

Lukas Aubin, investigador e especialista em geopolítica do desporto, contextualizou a presente situação desta forma, em declarações ao site Politico: «Todas as edições desde a criação dos Jogos em 1896 foram políticas ou geopolíticas. Hoje o nível de atenção é muito alto. É provavelmente o momento mais tenso a que assistimos desde o fim da Guerra Fria.»

Os anos de tensão entre a União Soviética e os Estados Unidos ficaram marcados pelos boicotes olímpicos de maior dimensão, na década de 80. Mas a política atravessou quase toda a história dos Jogos da era moderna, sempre acompanhados de complexas negociações diplomáticas de bastidores a tentar neutralizar conflitos, mas sem conseguirem evitar várias situações de rutura. Esta é uma viagem pelos momentos mais marcantes de conflitos que chegaram ao coração dos Jogos Olímpicos.

Boicotes ao longo da história olímpica

1920 

Os Jogos de 1916, que estavam previstos para Berlim, foram cancelados por causa da I Guerra Mundial. No regresso, em 1920, não foram convidados para Antuérpia os derrotados da guerra: Alemanha, Áustria e Hungria, Bulgária e o Império Otomano, que daria origem à Turquia. Também não participou a Rússia, depois da revolução de 1917. A URSS, aliás, só se associou aos Jogos Olímpicos em 1952.

1936

Berlim ganhou a organização dos Jogos em 1931, antes da ascensão de Hitler ao poder. Com a aproximação da data, houve movimentos em vários países para boicotar os Jogos, mas ninguém os levou por diante. Nos Jogos que serviram de sublimação da propaganda do regime nazi estiveram presentes 48 países, um recorde à altura. A Espanha, que entrara em guerra civil, não participou.

1948

Depois da II Guerra Mundial, que cancelou as edições olímpicas de 1940 e 1944, foram excluídos dos Jogos Olímpicos de Londres, em 1948, Alemanha e Japão, os derrotados da guerra.

1956

Os Jogos Olímpicos de Melbourne ficaram marcados por vários boicotes. Na sequência da violenta repressão soviética à tentativa de revolução na Hungria, a Espanha, os Países Baixos e a Suíça renunciaram aos Jogos em forma de protesto. Desse conflito ficou para a história olímpica o jogo que seria eternizado como «Banho de sangue», um encontro de pólo aquático entre Hungria e URSS marcado por incidentes violentos. Outro foco de tensão internacional levou a mais boicotes aos Jogos australianos. A invasão do Egito por Israel, França e Reino Unido depois da nacionalização da companhia que geria o canal do Suez, levou o Egito e alguns países aliados, como o Líbano e o Cambodja, a boicotar os Jogos. Ausente esteve também a China, que se tinha estreado como República Popular da China em 1952, mas iniciou aqui um boicote aos Jogos Olímpicos, por causa do estatuto internacional de Taiwan, que só terminaria em 1984.

1964

Os Jogos de Tóquio marcam o início da exclusão da África do Sul, por causa da política do Apartheid, uma suspensão que duraria até 1992. Esta edição fica também marcada pela autoexclusão da Indonésia, depois de um conflito com o COI por se ter recusado a receber atletas israelitas e de Taiwan.

1976

Um jogo da seleção de râguebi da Nova Zelândia na África do Sul levou a um dos boicotes olímpicos de maior dimensão. Em protesto por o COI não ter aplicado sanções à violação pelos All Blacks do boicote desportivo internacional à África do Sul, trinta países, na maioria africanos, recusaram estar presentes em Montréal.

1980

O maior boicote de sempre foi liderado pelos Estados Unidos, a pretexto da invasão do Afeganistão pela URSS, anfitriã dos Jogos. Mais de 60 países recusaram a presença em Moscovo, incluindo o Japão e a Alemanha. Outros, entre eles potências europeias como o Reino Unido, França, Espanha e Itália, apoiaram o boicote, mas tiveram atletas presentes, alguns com delegações reduzidas e outros sob bandeira neutral. Portugal, apesar do apelo do Governo ao boicote, esteve presente com uma delegação curta. Estiveram em Moscovo 80 países, o número mais baixo desde 1956.

1984

Quatro anos mais tarde, foram os Estados Unidos a receber os Jogos Olímpicos e o bloco soviético, com exceção da Roménia, respondeu na mesma moeda. Boicotaram os Jogos de Los Angeles 15 países, liderados pela URSS.

1988

A Coreia do Sul recebeu os Jogos que pretendiam ser de reconciliação. Disseram presente a generalidade dos países, incluindo o bloco soviético, mas não todos. A Coreia do Norte admitiu participar, mas depois de ver recusada a exigência para ser co-anfitriã dos Jogos excluiu-se, num boicote em que teve a companhia de Cuba.

1992

Os atletas da antiga Jugoslávia, em guerra civil e em processo de dissolução por várias repúblicas, foram autorizados a competir em Barcelona como independentes. Uma solução, como recorda a Associated Press, que o COI evocou agora, a propósito do enquadramento dos atletas russos nos Jogos Olímpicos de Paris.

2022

Os últimos Jogos de Inverno assistiram a uma outra forma de boicote. Liderados pelos Estados Unidos, vários países decidiram não se fazer representar diplomaticamente em Pequim, como forma de protesto pela violação dos direitos humanos na China, levantando questões como o Tibete, a perseguição aos uigures ou os protestos em Hong Kong.