Líbia: viagem pelo olhar do futebol (parte I)

Baltemar Brito viveu apenas um mês na Líbia. Mas deu para ficar com uma ideia. «Era uma ditadura preocupada com a segurança e o poder, mas que tinha alguma tolerância: os líbios são desorganizados e preguiçosos, não querem trabalhar e não têm respeito uns pelos outros, o trânsito era caótico.»



«Não havia respeito pelas rotundas e muita gente conduz em contra-mão, em todo o lado havia carros estacionados em cima do passeio, enfim, são coisas que numa ditadura organizada não são normais. Mas lá existiam. Para além disso, nunca vi ninguém passar fome», diz o antigo adjunto de Mourinho.

Zé Carlos, antigo adjunto de José Rachão, esteve no Al-Ittihad antes de Baltemar Brito. Viveu um ano em Tripoli e adianta mais alguma coisa. «É verdade que não se vê fome na rua, mas é um país diferente da realidade do Golfo Pérsico, apesar da proximidade geográfica e de ter muito petróleo.»

«No Golfo Pérsico dão-se casas às pessoas, por exemplo. Na Líbia, apesar de ser um país rico, existia muita pobreza. Era uma ditadura num país atrasado. O consumo era reprimido. Nem sequer havia shoppings. O único centro comercial era feito de meia-dúzia de lojas e pertencia à filha de Khadafi.»

«Sentia-se o poder da opressão nos detalhes«

Para além disso tinha a marca da ditadura. «Havia um enorme culto da figura de Khadafi. Levava-se com fotos dele em todo o lado, nas ruas, nas paredes dos prédios, em outdoors... Quando um jogador marcava um golo, por exemplo, dedicava-o a Khadafi. Sentia-se o poder da opressão nos detalhes.»

Baltemar Brito fala de «disciplina rígida» também no futebol. «Se houvesse algo que corresse mal, se houvesse insultos, por exemplo, o filho de Khadafi mandava fechar o campo e o jogo era suspenso. O último jogo que devia ter feito foi suspenso porque os adeptos adversários foram ao hotel insultar-nos.»

«Segunda-feira entrei em pânico»

O antigo adjunto de Mourinho não imaginava que aquele seria o último jogo na Líbia. «Aconteceu tudo muito rápido. Quando começaram os distúrbios na Tunísia e no Egipto, percebemos que chegariam lá. Mas a situação parecia controlada. Depois desse jogo adiado tivemos dois dias de folga», conta.

«Quando na segunda-feira fui para treinar, a cidade parecia um deserto. Não havia ninguém na rua, o comércio estava fechado, um prédio estava a arder. Cheguei ao campo e também estava fechado. Nessa altura entrei em pânico porque fiquei sem comunicação: nem telemóvel, nem internet», adianta.

«Voltei a casa e a única forma de saber alguma coisa era pela televisão. Então tentei entrar em contacto com a embaixada. Quando finalmente consegui, foi-me dito para não sair de casa. No dia seguinte disseram-me que havia um avião pronto para viajar para Portugal e eu vim-me imediatamente embora.»

«Aeroporto era a fotografia do inferno»

Quarta-feira chegou a Portugal e respirou de alívio. «O aeroporto era a fotografia do inferno», diz. «Toda a gente a tentar sair, era o caos. Só quando cheguei a Portugal é que tive mesmo a noção do que se passava na Líbia.» Zé Carlos já estava em Portugal e segue a situação com atenção.

«Tenho falado com amigos de fora do futebol que entretanto voltaram a Portugal e falam-me com medo. Dizem-me que quando tudo isto começou na Tunísia ele começou a contratar mercenários. Não tenho dúvidas que vai fazer um banho de sangue. No fim só vai ficar a terra queimada», diz.

Baltemar Brito diz que ficou com uma boa impressão da Líbia e lamenta tudo o que está a acontecer. «A maneira como eles vivem o futebol, já não se vê no Ocidente. Um dia chegámos a uma rua movimentada e estava fechada: os miúdos tinham-na fechado com pedras para fazer um jogo de futebol», finaliza.