Já imaginou ficar com o carro avariado e ter de abandoná-lo no local porque corria o risco de ser bombardeado? Ou não poder tirar uma fotografia à casa onde viveu durante um ano? São realidades difíceis de conceber, é certo, mas foram realidades que alguns portugueses viveram. Na Líbia, claro.

Numa Líbia que já não é assim tanto de Khadafi. Ao fim de 41 anos o regime pode estar a viver os últimos dias. As linhas que se seguem são por isso uma viagem a uma realidade que o é cada vez menos: uma viagem à Líbia de Khadafi pelos olhos de dois portugueses que trabalharam no Al-Ittihad.

«Filho de Khadafi manda em tudo, até na federação»

O Al-Ittihad, convém explicá-lo o mais cedo possível, é o clube de Mohamed Khadafi. O filho do ditador. «Ele é que decide tudo no clube», diz Baltemar Brito. «Aparece pouco, mas quando aparece é para decidir. Além disso também manda na federação. Todos os estádios têm uma foto enorme dele.»

Baltemar treinou o clube do filho de Khadafi (não confundir com Saadi Khadafi, que jogou em Itália) durante um mês. Foi apanhado na espécie de guerra civil e viajou para Portugal na terça-feira. Antes dele o Al-Ittihad foi dirigido durante uma época por José Rachão, que teve Zé Carlos como adjunto.

«Estive a cinquenta metros de Khadafi»

Ora um ano deu para ter uma noção fiel da ditadura. «Havia muita opressão», diz Zé Carlos ao Maisfutebol. «Sobretudo nas questões de segurança. A família Khadafi é obcecada pela segurança. Mohamed Khadafi, por exemplo, andava com quinze seguranças. O pai então trazia um pelotão.»

«Quando chegámos a Tripoli fomos avisados para que se o carro avariasse em frente ao palácio de Khadafi para o abandonarmos e sairmos dali rapidamente. Se ficássemos mais de cinco minutos eles podiam bombardear o carro», adianta Zé Carlos, ele que chegou a estar perto de Muamar Khadafi.

«Todos os anos em Setembro ele celebrava o aniversário da chegada ao poder. O filho convidou-nos para a festa, estava lá tudo o que era rei e príncipe africano: centenas de pessoas a festejar durante dias. Mas ninguém podia aproximar-se de Khadafi. O mais perto que estivemos foi a uns 50 metros.»

«Dormia com um polícia à minha porta»

De resto, ambos experimentaram parte dessa segurança. «Nós vivíamos no Complexo Regatta que era uma cidade dentro da cidade. Era um complexo de casas geminadas onde só se entrava com uma licença. Era lá que viviam os filhos de Khadafi, os diplomatas, os responsáveis das petrolíferas, enfim.»

Um sítio, está bom de ver, coberto de segurança até às orelhas. «Era patrulhado, vigiado e todas as casas tinham um polícia que dormia à porta. Não podíamos filmar ou tirar fotos. Também vivia lá um francês muito enigmático, mais tarde viemos a descobrir ser uma alta patente que estava a treinar as tropas.»

A experiência serviu para conhecer bem, por exemplo, o filho de Khadafi. «Íamos muito jantar a casa dele. Embora vivêssemos ambos na Regatta, ele morava no alto de uma colina. Para ir lá tínhamos de parar o carro a dois quilómetros da casa e vinha um jipe à prova de bala buscar-nos para nos levar até lá.»

«Não precisava de carta de condução»

Para além disso era o filho de Khadafi. O que proporcionava situações... curiosas. «Quando cheguei à Líbia perguntei se a carta de condução era aceite lá. Responderam que não precisava de carta condução, ou bilhete de identidade. Bastava mostrar o cartão do Al-Ittihad e tinha a cesso a tudo.»

As questões de segurança não se notavam só na protecção da família. «Quando chegámos, havia vários relatos de carjacking. Muamar Khadafi foi à televisão fazer um aviso de que a partir daquela data os polícias tinham ordens para atirar a matar e a verdade é que o carjacking acabou», garante.

Líbia: viagem pelo olhar do futebol (parte II)