A imagem inicial do filme Invictus é perfeita. A película celebra a importância do título mundial de râguebi em 95 no sucesso da integração social na África do Sul e começa com uma imagem de jovens brancos a jogar râguebi e de jovens negros a jogar futebol. Ao meio uma estrada e arame farpado a separar os dois campos.
Mandela, 20 anos depois: como ele mudou o futebol na África do Sul
Era assim a África do Sul de final dos anos oitenta. Foi assim a África do Sul durante três décadas, aliás. Rogério de Sá e Zeca Marques viveram esse país. Ambos jogaram futebol em pleno apartheid. «Era complicado», diz o segundo, que deixou o Porto com dois anos e actualmente é adjunto dos Moroka Swallows.
«Havia um campeonato de brancos, um campeonato de negros, um campeonato de mestiços e um campeonato de indianos. Mais tarde os dois últimos juntaram-se e até podiam ter brancos, mas o negro foi sempre à parte. Só a partir de 85 ou 86 é que se juntaram e podia haver equipas que incluíssem todas as raças.»
Fugido da parte branca para jogar futebol
Rogério de Sá só já conheceu essa parte. «Eu era o único branco numa equipa negra. Podíamos treinar e jogar, mas não podíamos viver juntos.» O que criava situações extremas. «Não podia estagiar com eles, por exemplo, porque os estágios eram na parte negra. Então fugia. Escondia-me num quarto e ficava lá fechado.»
«Medo de ser apanhado? Não, não tinha. Era guarda-redes e era maluco. Os negros sempre me fizeram sentir bem. Entre eles estava à vontade. Joguei râguebi na escola só com brancos, vivia na parte da cidade só para brancos e durante dois anos fiz a tropa só com brancos. Quando saí, voltei para a equipa negra.»
Duas raças, dois tipos de futebol
Zeca Marques é mais velho e passou pela parte anterior do futebol no apartheid. Uma parte que Rogério de Sá só conheceu de ver o pai jogar. «Havia campeonatos de brancos e campeonatos de negros, campos de brancos e de negros, sem qualquer mistura. Cada raça estava na sua metade da cidade e aí competia.»
O que se reflectia também nas condições físicas. «Os estádios nacionais eram na parte branca, os estádios municipais nas duas partes. Mas os recintos dos negros estavam muito estragados. Por norma tinham relva e boas condições, mas estragavam-nos em protesto e nunca mais eram arranjados. Os nossos eram bons.»
Um desporto adormecido três décadas
Num país marcado pela arrogância branca, que se considerava raça superior, vetando por exemplo aos negros a direitos como votar ou ter prioridade numa fila, o desporto mais popular era naturalmente menosprezado. Só a libertação de Mandela e a integração social que se lhe seguiu mudou o rótulo. Muito depois.
Antes disso o futebol era amador. «Os brancos preferiam o râguebi, o críquete e o golf. Esses desportos tinham as melhores condições e eram desenvolvidos», diz Rogério de Sá. «Pagámos uma factura enorme por causa do apartheid. Houve muitos bons valores que nunca tiveram uma carreira», conclui Zeca Marques.

Veja um vídeo sobre o desporto no apartheid: