"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.
Rui Figueiredo, avançado de 40 anos do Perelhal
«Os dois títulos que tive na seleção são os pontos mais altos da minha carreira. Fiz um percurso desde os sub-15 até aos sub-20 e tive a sorte de apanhar uma geração muito boa, com o Hugo Viana, Ricardo Quaresma, Raúl Meireles, Custódio. Estivemos juntos até aos 20 anos, conseguimos o título de sub-16 e culminámos o percurso no final. A passagem dos juniores para os seniores foi com a vitória no Torneio de Toulon.
Antigamente, as seleções eram compostas por seis ou sete jogadores de FC Porto, Sporting e Benfica. Os restantes, eram os que sobressaíam nos clubes mais pequenos. Não era fácil. Ajudou-me ter passado pelo Sporting por volta dos 14 anos. No Torneio Lopes da Silva, fui melhor jogador e melhor marcador. Mas era difícil, a visibilidade era muito menor. Tinham de ir ao local ver o jogador. Hoje, podes estar no sofá e ver um jogador na Indonésia.
A nossa seleção tinha uma boa base, a cada ano aparecia um jogador diferente, como o Danny e o Cristiano Ronaldo. Estávamos em estágio e, uns dias antes de irmos para Toulon, ele veio fazer um treino, onde treinámos apenas bolas paradas e não deu para ver muito bem como ele era. Depois desse treino, arrancámos para Toulon, ficámos no hotel e, no dia a seguir, tivemos jogo.
Não conhecia o Ronaldo, mas as pessoas do Benfica e do Sporting diziam-me que era fora de série. Até era eu que ia jogar, ele entrou no meu lugar, mas não sabia como é que ele era. A verdade é que me sentei no banco e disse: “Deixem ver o que este rapaz vale”. Pfff, logo nos primeiros lances em que tocou na bola deu para ver que era diferenciado. Nem havia dúvida.
Se fosse outro qualquer, ficava chateado, mas com o melhor do mundo não ficaria chateado, bem pelo contrário. Era diferente. Quem joga, sente logo quando um jogador tem coisas diferentes dos outros. Ele tinha tudo. Era rápido, ágil, forte e chutava bem com os dois pés. Ainda tinha alguns erros, que depois foi aprimorando. Não passava a bola a ninguém e rematava de todo o lado.
Lembro-me que ele fintava dois jogadores, vinha para trás fintar mais um e, às vezes, era desnecessário. Coisas da idade. Agarrava-se em demasia à bola, mas o que íamos dizer? Depois, fintava dois ou três e marcava.
Um dia, tivemos um treino após um jogo, fizemos alguns remates à baliza no final, viemos todos para o autocarro e ele continuou lá. Tivemos de esperar que ele terminasse. Não disse nada a ninguém. Pegava em bolas, punha-se a fazer fintas, cruzava e começava de novo. Tivemos de esperar uns 10 minutos para ele acabar essas coisas que ele fazia após o treino.
Dentro do hotel também jogávamos PlayStation e, enquanto ele estava de fora, estava sempre a trabalhar. Abdominais, flexões… tudo o que dizem dele é verdade. É a imagem de marca dele, não para, não há um minuto de descanso.
Tínhamos outros jogadores que jogavam na I Liga há algum tempo, como o Luís Lourenço ou o Quaresma. Mas, depois, quem sobressaiu foi o Ronaldo. A nossa geração tinha jogadores de muita qualidade. O Quaresma era um fora de série, o Lourenço um marcador de golos nato... Custódio, Hugo Viana e Meireles no meio-campo. E o Danny.
Houve um jogador que deixei de acompanhar, esteve connosco até sub-19, mas não veio ao Torneio de Toulon. Era o Sílvio, avançado do FC Porto. Tinha uma qualidade fantástica, não sei o que lhe aconteceu [n.d.r. terminou a carreira em 2017/18, no Luxemburgo], nunca mais ouvi falar dele. Era muito forte, muito potente.
Por volta dos 19 anos, consegues perceber se vais ser alguma coisa no futebol ou não. Com 17 anos, tinha-me estreado na I Liga. Pensava que ia ser e queria ter sido um jogador muito maior do que fui. Também não trabalhei devidamente, o que me prejudicou, bem como algumas opções que tomei, como ir para fora muito cedo. Podia ter feito uma carreira muito mais consistente do que aquela que fiz.
Jogava nos juniores do Gil Vicente com 17 anos. Fui chamado ao treino dos seniores na terça-feira da semana do jogo com o Benfica. Parti aquilo tudo e o treinador Luís Campos disse para voltar a treinar na quinta-feira. Tivemos um jogo-treino e voltei a estar bem. O Luís Campos disse-me: “Vai lá cima falar com o presidente e assina um contrato profissional. No domingo, vais lá para dentro”.
Foi no Estádio da Luz antigo. Lembro-me de tudo, desde o estágio, até ao Luís Campos dizer o onze titular, à entrada ou o aquecimento. Para um jovem de 17 anos, ser titular no Estádio da Luz, contra o Benfica - o clube que gosto - e perante 40 mil adeptos foi fantástico.
Estive com o Luís Campos dois anos. Como treinador, era excelente. Os métodos de treino dele eram muito acima daquilo que se praticava na altura e era muito forte na gestão do grupo. Dava abertura aos jogadores, falava connosco, ia aos jantares todos, metia-se com os jogadores, jogava às cartas. Era um treinador mais da nova geração, o que fez um pouco a diferença na altura, mas acabou por não conseguir fazer a carreira de treinador que gostaria.
Quando desci de divisão com o Desportivo das Aves, recebi um convite para ir jogar em Chipre. Estava um pouco desapontado nessa época, não tinha jogado muito, o professor Neca punha-me numa posição que não gostava. Precisava de jogar, apareceu uma oportunidade financeiramente muito melhor e optei por ir um pouco às escuras. Não conhecia o clube nem a cidade, mas arrisquei. Talvez tivesse esperado mais uns anos. Tinha clubes da II Liga interessados, como a Naval. Se calhar, era a melhor opção, mas não foi assim que aconteceu.
O país era excelente. O campeonato, no início, era muito desequilibrado, mas depois, com a chegada de jogadores e treinadores estrangeiros, melhorou muito. A nível financeiro, os primeiros anos foram bons, mas depois os clubes ficaram com muitas dificuldades para pagar.
Quando voltei a Portugal, fui para o Varzim a convite do Dito. Subimos à II Liga, mas o Varzim não se conseguiu inscrever e voltámos à II Divisão B. Fiz mais dois anos no Varzim e fui para o Limianos. A partir daí, comecei a pensar mais no que poderia fazer fora do futebol e em estar mais a nível amador do que profissional.
Investi na área que mais gostava, a parte de treino e ginásio. Tentei arranjar clubes que treinassem à noite e estudava de manhã.
Em 2020, a meio da época, desisti. Não sentia motivação para jogar, apesar de estar bem a nível físico. Decidi abandonar a carreira, sem muito alarido, desliguei-me do futebol durante três anos.
O Perelhal surgiu através do presidente, que tem um centro de treinos. Entrei em contacto com ele através de um amigo, que lhe perguntou se precisava de alguém para dar treinos. Ele nem sabia muito bem quem eu era, mas depois de me conhecer perguntou se estava disposto a ajudar o clube esta época. Vi isso como uma forma de nos ajudarmos mutuamente, pensei, falei com a família e vi que tinha disponibilidade.
Pensava que o futebol Popular era pior, mas surpreendeu-me a qualidade técnica de alguns jogadores. O mais difícil é jogar fora de casa nos “pelados”. O nosso campo é bom, com um sintético recente, mas existem várias equipas com “pelados” e é um choque. Já não jogava em “pelado” há quase 30 anos. Não é fácil acordares aos domingos de manhã para jogares num “pelado”. A nossa equipa joga muito bem, temos gente com qualidade, mas nesses campos é muito difícil.
No fundo, ali encontram-se jogadores que gostam de jogar futebol. Podem não ser muito bons tecnicamente, mas todos têm uma coisa em comum: a paixão pelo futebol. Ninguém joga pelo dinheiro, mas por gostarem de jogar à bola.
Estamos bem, mas lesionei-me mais uma vez, é a terceira lesão este ano, mas está a correr bem. Já tenho 19 golos, estamos em segundo, a dois pontos do primeiro classificado, mas com dois jogos em atraso. E estamos na final da Taça de Barcelos, que vai jogar-se no estádio onde joga o Gil Vicente.
Os meus dias são quase todos iguais. Acordo às 08h00, levo a minha filha aos meus pais e o meu filho vai para o colégio. Sigo para o ginásio, dou treinos de PT e arranjo tempo para treinar também. Às sextas-feiras, não trabalho de tarde e treino à noite no Perelhal, até às 22h00.
Fazem um convívio no final, com jantar, estão sempre a chatear-me a cabeça para ir, mas ainda não fui. Tenho de ir um dia. Se ganharmos a Taça, fica a promessa.»