A Copa vai ser um sucesso ou um fracasso? Estará o Brasil preparado para estar à altura de organizar o maior evento desportivo de sempre?

Os últimos meses avolumaram dúvidas, sobretudo depois da explosão de manifestações violentas durante a Confederações, prova em que, no entanto, o Brasil deu mostras de estar à altura no plano desportivo e mesmo de organização nos estádios.

António Prata Tavares, empresário de jogadores, antigo repórter de rádio, jornalista e comentador desportivo durante anos no Brasil, tem um ponto de vista privilegiado para antecipar a Copa.

Português de nascimento, natural de Espinho, foi para o Brasil muito cedo, apenas seis anos. Cresceu em Belém do Pará, zona com fortíssima influência portuguesa.

Por lá deu os primeiros passos no jornalismo e no futebol. A família voltou a Portugal quando Prata Tavares tinha 16 anos. Optou por continuar em Belém do Pará, fez da rádio e da cobertura de jogos de futebol o seu meio de subsistência.

No final dos anos 70, com 28 anos, voltou a Portugal. Ainda chegou a colaborar para jornais, fez a cobertura para uma rádio brasileira de um Portugal-Brasil que o escrete venceu 1-4, no pós Mundial-82.

Até que no início dos anos 90, desafiado por Ivo Amaral, grande figura dos relatos de futebol na «Super Marajoara», começou a representar jogadores de futebol.

«O João Pinto estava indo para o Benfica e o Boavista precisava de um armador. Trouxe o Artur, que fazia esse lugar no Remo, jogava atrás do Luciano Viana. Só que o Luciano adoecei e acabou por ser o Artur a assumir esse lugar no ataque do Boavista», recorda Prata Tavares, em conversa com a
Maisfutebol Total. 

«Desde aí, já trouxe vários jogadores brasileiros para quase todos os principais clubes em Portugal. E também passei a representar outros futebolistas, sem ser brasileiros, como o Litos e muitos outros», conta Prata Tavares.

Profundo conhecedor do futebol brasileiro, António Prata Tavares passou metade da vida em Portugal e outra metade no Brasil e tem memória notável de momentos relevantes do escrete nas últimas décadas. 


O PRIMEIRO GOLO NO MÍTICO MANGUEIRÃO, RELATADO POR PRATA TAVARES, EM 1975:




Leia a entrevista de Prata Tavares à Maisfutebol Total, sobre Copa, o escrete nos Mundiais, Scolari, clubes e calendário no futebol brasileiro.


FUTEBOL BRASILEIRO:

Como está o futebol brasileiro no plano da organização?
Ainda está abaixo do potencial dos clubes e da paixão do público. Após ser criado o Estatuto do Torcedor, que tem por objetivo proteger os interesses do consumidor de desportos no papel de torcedor, obrigando as instituições responsáveis a estruturarem o desporto no país de maneira organizada, transparente, segura, limpa e justa, houve melhorias na organização. No entanto, há ainda um longo caminho a percorrer. Alguns campeonatos são deficitários. Existe uma busca de resolução de conflitos na Justiça Comum e o atual presidente da CBF é algo contestado. E, este ano, como reflexo disso, o Brasil teve apenas o Cruzeiro na Copa Libertadores da América a chegar aos quartos de final e pela primeira vez em mais de 20 anos não conseguiu ter qualquer equipa na meias-finais da prova. Em bom rigor, o nível de organização do futebol brasileiro reflete bem o país, pelo potencial, pelos improvisos, e há quem se atreva a dizer, pela corrupção…


Quais são os clubes mais organizados?
Cruzeiro e Atlético Mineiro, em Minas Gerais, e o São Paulo. Mas é inegável que os grandes como o Corinthians (São Paulo), Grêmio e Internacional de Porto Alegre (Rio Grande do Sul) apresentam grandes melhorias, apesar dos defeitos tradicionais.


O calendário competitivo, entre estaduais e Brasileirão, está adequado? É um ponto crítico para o Movimento Bom Senso FC, por exemplo.
Pode melhorar. Muitas equipas não conseguem fazer pré-temporada. Os estaduais estão reduzidos a três meses e, assim sendo, muitos clubes ficam parados nove meses o que, em termos europeus, isso é impensável. Jogadores e técnicos nesse Movimento Bom Senso FC, pressionando a CBF, as Federações Estaduais e os clubes por um calendário justo, organizado e adequado. A grande dimensão do território brasileiro, «per si», já é um problema: o Brasil tem muitos Brasis. A concentração dos grandes clubes prevalece no Sul e Sudeste decorrente do poder económico e político. O país tem diferenças abissais nas regiões. No Nordeste existe um nível intermediário, principalmente Pernambuco, Ceará e Bahia, que exploram bem o turismo e contam com indústrias de razoável porte. No caso do Norte, com exceção do Pará, tudo é pobre demais. Mesmo no Amazonas, que ganhou uma sede do Mundial, onde Portugal jogará, os clubes são pobres. Para ilustrar isso, atrevo-me a dizer que um campeonato de Pelada dá muito mais público do que nos jogos do Estadual Amazonense. No Pará, Remo e Payssandú alimentam a rivalidade local e o Mangueirão, em Belém, tem excelente público no Clássico e em jogos que envolvam outras equipas como Flamengo, Vasco, São Paulo e Cruzeiro. 


Um calendário coincidente com o Europeu seria bom para o futebol brasileiro?
Essa é uma questão que envolve grande polémica no Brasil, sobretudo pelos interesses regionais. Há quem pense que poderia haver uma melhoria, fugindo do Carnaval, que sempre arrebata o torcedor. E, tradicionalmente, os campeonatos começam e terminam no mesmo ano. Penso que poderia ser conciliável mas deve ser questionado esse tema e muito bem debatido. A FIFA quer que assim seja.


A COPA

A Copa no Brasil vai ser um sucesso ou vai ser um fracasso? Será possível que venha a ser… as duas coisas?
O Mundial vai ser um grande sucesso a nível de público, como todos pensam. O risco de manifestações é real e será minorado quando a bola rolar. Neste momento, as massas estão em preparativos. O Estado brasileiro está atento e se armando para evitar manifestações durante os jogos. Julgo que será mau o «escrete» não render o esperado. Se a seleção brasileira não chegar à final, e se não ganhar, muita coisa que está encravada na garganta do cidadão brasileiro, que é um povo extremamente festivo, pode soltar-se. O sinal foi dado na Copa das Confederações, embora com manifestações encomendadas, como depois foi esclarecido. Já havia esse receio nos Jogos Panamericanos, no Rio, em 2007 (com obras sobrefaturadas), mas o evento transcorreu em paz e o povo contribuiu. Espero que não haja problemas neste Mundial.


OS CLUBES NO BRASIL:

Como empresário, prefere lidar com clubes brasileiros ou europeu?
Em alguns casos, prefiro os clubes brasileiros, noutros prefiro os clubes europeus. Depende dos clubes e daquilo que estamos a trabalhar. 


Em que aspetos os clubes brasileiros têm ainda que melhorar?
Em muita coisa, mas essencialmente tem a ver com o modelo de quem administra o clube. Em muitos clubes há ainda um Conselho Deliberativo, com pessoas ilustres, mas com idades já muito avançadas, que vêem ainda o futebol de maneira muito romântica. Quando uma direção quer tomar uma decisão que tenha que passar pelo Conselho Deliberativo, vai ter grandes obstáculos pela frente.


Quer dar exemplos?
A venda de um estádio. Já não faz sentido ter um estádio de 18 mil pessoas numa cidade, porque há um estádio na mesma cidade para se jogar o Brasileirão. No entanto, o conselheiro quer inviabilizar a venda, porque ele vê que aquilo foi a sede e era onde ele via os jogos antigamente do seu querido clube…


Esse peso do romantismo e da tradição ainda é muito forte e causa riscos nos clubes brasileiros...
Isso mesmo. E isso impede que muitos avancem para a noção de clube-empresa.


O Corinthians foi um dos que mais conseguiram avançar nesse aspeto nos últimos anos? Sim, concordo. Está mais organizado, apostou forte nos últimos anos nessa área.  


A enorme rotatividade dos clubes no Brasileirão é boa ou má? O Fluminense, campeão em 2012, só não desceu em 2013 graças ao caso da Portuguesa. Estivemos quase a ver um campeão em título a descer à Série B…
A competitividade é boa porque há mais candidatos à subida e também mais à descida. O Brasileirão, no modelo atual, mostra alguma dessa imprevisibilidade, também na questão do título: há cinco a oito candidatos ao título e o que tem acontecido que, depois, pelo menos uma dessas equipas, ou até mais, lutam é para… não descer. 


A forma como o calendário está organizado leva a que os principais clubes retirem importância aos estaduais? Daí o fenómeno Ituano campeão paulista, por exemplo?
A partir de um determinado momento, os principais clubes querem é estar na Copa Libertadores e no Brasileirão. São nessas provas que têm maior visibilidade. Mas esse é um fenómeno bem recente, porque até há poucos anos, muito poucos mesmo, o adepto em São Paulo torce mais ali do que no campeonato brasileiro. O palmeirense quer que o Palmeiras, no estadual, esteja bem, porque o seu clube tem mais condições de ser campeão do que no Brasileirão. O mesmo acontece em estados que não têm nenhum representante na Série A. Em Pernambuco, por exemplo, um duelo no estadual entre Santa Cruz e Náutico, ou Santa Cruz e Sport Recife, aquilo tem tanta gente como um Porto-Benfica ou um Sporting-Benfica. O mesmo acontece, por exemplo, em Belém do Pará, entre Remo e Payssandú. A ponto de poderem fazer cinco clássicos, sempre com muita gente. Fazem o calendário para que isso aconteça. 


As receitas de bilheteira desses jogos são o garante do orçamento de muitos clubes nesses estados…
Sem dúvida. O quesito do público (receita de bilheteira) é o quinto ou sexto ponto na arrecadação de receitas dos clubes no Brasil. Nesses estádios que falei, a paixão pelo futebol é tão grande que ponham o preço que puserem, o adepto vai na mesma e enche o estádio. Remo e Payssandú chegam a fazer particulares com 40 mil no estádio e receita de bilheteira de 500 mil reais (cerca de 150 mil euros).


A rapidez com que se despedem treinadores nos clubes brasileiros é sinal de falta de capacidade de gestão? Porquê tanta falta de paciência?
Não há essa paciência, de facto. Há uma pressão enorme sobre o treinador. A direção do clube sabe que ele é competente. Mas perante a pressão da massa adepta, acaba por ceder. E não temos evoluído nesse aspeto. E o adepto é cego nisto tudo: esquece rapidamente, mesmo que tenha ganho pouco antes. O Cuca foi campeão sul-americano, mas pouco depois foi muito contestado no Atlético Mineiro, por ter perdido aquele jogo em Marrocos, no Mundial de Clubes, com o Raja. 


O ESCRETE

O melhor Brasil que se lembra de ver foi o do Mundial-1982?
Para mim, foi uma das melhores seleções de sempre. Para quem gosta de futebol, pelo menos sim. Pelo que vi, e com o risco de que a memória nos atraiçoe um pouquinho, seria uma espécie de Barcelona de Guardiola, salvaguardadas as devidas proporções. Desde a baliza até ao centro-avante, em todas as posições, dava gosto ver jogar aquela equipa. Parecia que a lição estava bem estudada. Faltava só o Pelé. Se o Pelé estivesse nesta seleção de 82, era possivelmente a melhor equipa de sempre.


Foi uma seleção inovadora em termos táticos…
Sim, estávamos numa fase de alterações a esse nível. O Zagallo introduz, em 1970, o recuo do extremo, que era ele mesmo. E ninguém jogava assim. E começa a haver, em vez do 4x2x4, um 4x3x3, em 70. E em 1982, o Telê impôs já um 4x4x2 muito maleável, com os extremos e os alas a avançar no terreno, trocando posições. E o meio-campo veio todo parar ao futebol europeu: o Sócrates era um jogador lento para o futebol europeu, mas era um grande jogador na seleção brasileira, porque ele compensava a sua lentidão com processos muito rápidos de execução. E havia o Falcão, esse sim com muita vontade, muita determinação muita luta. E o Toninho Cerezo, sempre desengonçado, mas sempre eficaz. Tinha acabado de fazer uma época fantástico no Atlético Mineiro.


E quanto ao escrete atual? Que lhe parece este Brasil nesta segunda passagem de Scolari pela seleção?
Este Brasil tem que se assumir como candidato ao título.


O principal candidato ao título?
Acho que sim. Embora nestes eventos haja sempre coisas imprevisíveis. Não há certezas absolutas e no futebol, muito menos. Paira no Brasil um sentimento curioso, mesmo para a juventude dos dias de hoje. É a segunda vez que o Brasil organiza um Campeonato do Mundo. E o Brasil não esquece nunca o que aconteceu em 1950, com a perda, em pleno Maracanã, para o Uruguai. E retém, inclusive, a imagem do Barbosa se estirando todo e não conseguindo chegar à bola. Não sei até que ponto isso não será um ponto neste Mundial. Porque o Brasil nunca conseguiu ganhar um Mundial em casa. Mas se formos olhar para Mundiais anteriores, normalmente onde se realizam mundiais, ganham seleções da região: na Europa, uma equipa europeia, na América do Sul uma seleção sul-americana. Com algumas exceções.


O facto de Scolari ter sido o selecionador que levou o Brasil ao penta é um trunfo e aumenta o favoritismo do escrete?
Acredito que sim. No Brasil, é considerado que Scolari fez um excelente trabalho na primeira vez no escrete, do mesmo modo que fez um excelente trabalho na seleção portuguesa. E muitos brasileiros não compreendem, até, porque é que em Portugal ele foi tão contestado. E a resposta que tenho sempre na ponta da língua, é simples: «Perdeu a final, contra a Grécia». No Brasil, também não perdoariam. O Scolari ganhou a final do Mundial, caso contrário não estaria agora a orientar a seleção brasileira.


A vitória na Confederações foi o ponto de viragem? Antes disso, a seleção brasileira estava desacreditada…
Sim, sem dúvida. Esse triunfo foi fundamental para a preparação do Scolari. Nessa altura já se percebeu, em traços gerais, como é que o Felipão pretende montar o Brasil para a Copa.


Neymar está para o Brasil como CR7 está para Portugal, ou nem tanto?
Não tanto. São dois jogadores cruciais, mas diria que Ronaldo tem mais importância na seleção portuguesa do que Neymar no Brasil. Se CR7 estiver ao nível do jogo na Suécia, Portugal tem fortes possibilidades, também. Mas, às vezes, essa dependência tão flagrante do melhor jogador não é boa, porque o alvo a abater dentro do campo vai ser ele.


SCOLARI

Scolari será uma espécie de Telê Santana, talvez não tão evoluído taticamente, mas a apostar mais no grupo?
Diria que o Telê tinha como objetivo fundamental jogar bonito e introduzir qualidade no jogo, com posse de bola e jogo. O Scolari tem mais cuidados defensivos, sempre teve. Mas acho que tem conseguido armar bem a estrutura.


Em 2002, Scolari tinha Ronaldinho, Ronaldo, Rivaldo e Roberto Carlos… Se calhar, era uma seleção com mais nomes e mais experiente.
Sim, era uma seleção diferente, com nomes consagrados. Esta é mais jovem, mas com talento também.



RISCOS E VANTAGENS PARA O BRASIL

O que pode correr mal no Brasil-2014?
Tenho um certo receio dalgum jogo correr mal e a seleção ser eliminada. Isso seria desastroso para o resto da competição.


E a nível organizativo?

Superfaturamento (derrapagens) houve em todo o lado. No Euro-2004, infelizmente, também tivemos. Mas no Brasil-2014 são bem maiores, absurdos. Por outro lado, e eu conheço bem o terreno, sei que há grande vontade que as coisas corram bem. Manaus, que provoca alguma preocupação a Portugal que vai lá jogar, é muito pobre. Houve aposta social das autoridades, foi uma opção política, para incrementar o turismo na região. Belém do Pará estava convencido que iria ser cidade-sede, mas como tem turismo mais desenvolvido, houve opção por Manaus.


Como homem de negócios, como é que encara o tal «jeitinho brasileiro» que comprometeu as obras de mobilidade nas cidades-sede?
Sem se cumprir a palavra, não é possível mesmo. Mas eu acredito que os estádios ficarão prontos e que no essencial as coisas vão correr bem. Com alguns problemas, mas bem. Nas ruas, poderá haver algum aproveitamento por parte do bandido que sai à rua e parte um vidro, ou uma montra, ou rouba, no seguimento das manifestações.


No final de tudo, além das boas receitas de turismo e dos estádios cheios, o Mundial-2014 será bom ou mau para o futebol brasileiro?
Em alguns estados sim, nomeadamente no sul, no sudoeste e sudeste. Noutros, tenho grandes dúvidas. O Brasil é altamente deficitário em infra-estruturas, em meios de transporte, por exemplo. Aeroportos nem tanto, porque parece que tem havido uma certa modernização. Parece porque neste momento vamos a alguns e não dá para ver nada, porque está sempre em obras… O problema logístico é relevante. Não tanto para as seleções, que têm avião próprio, mas para adeptos e até para jornalistas que vão fazer a cobertura da Copa. Vai haver atrasos nos voos, não sei se significativos ou não. Mas há uma preocupação em termos políticos que as coisas corram bem. Sobretudo a nível local, estadual. O poder político em Salvador está muito preocupado com os jogos na Baía. Então quer que tudo corra bem. E se por causa disso construíram caminhos, estradas, na Baía, ótimo. Assim, vai ficar a infraestrutura e é nisso que o Brasil é deficitário. Outra coisa é a questão do metro. Aqui na Europa, andar de metro é fantástico. Mas lá é impossível andar de metro, é só ver como anda em São Paulo ou no Rio. Num local para 30, andam 500 pessoas… e vai gente pendurada! Não sei como vai ser na Copa. É um dos problemas sérios. Se houvesse uma rede de metro compatível com o tamanho de uma cidade como São Paulo ou o Rio, muitos destes problemas eram minimizados. Mas assim, não sei: o brasileiro já está cansado destes problemas.