Quando a França foi campeã do mundo em 2018, Aurélien Tchouaméni ainda nem se tinha estreado como profissional. De lá para cá, o miúdo que começou a jogar a avançado e tinha Lisandro López como ídolo de infância revelou-se no Bordéus, explodiu no Mónaco, levou o Real Madrid a bater o recorde de transferências da época para o contratar e no Qatar está a fazer esquecer as baixas de Pogba e Kanté no meio-campo da França. Foi uma revelação precoce, mas só deixou a mãe satisfeita quando terminou os estudos.

Agora, o médio de 22 anos que se destaca pela inteligência e pela maturidade é o coração do meio-campo da França que procura nesta quarta-feira, frente a Marrocos, continuar na corrida para revalidar o título mundial. É até aqui o jogador mais utilizado pelos «Bleus» no Qatar, o único titular nos cinco jogos até à meia-final.

O futebol estava lá desde sempre para o miúdo de origem camaronesa que nasceu em Rouen e começou por acompanhar os treinos do pai, que conciliou durante muitos anos a profissão de farmacêutico com a de futebolista amador. Quando a família se mudou para Bordéus, Aurélien foi jogar para um pequeno clube local, o SC Artigues. E foi aí que se destacou, num torneio para miúdos de 6 e 7 anos. Chamou desde logo a atenção do Bordéus, mas o pai não quis que ele entrasse tão cedo no futebol de competição. «Rapidamente tinha o Bordéus em cima de mim», contou o pai, Fernand, à France Football: «Foi isto todos os anos. Mas eu sempre recusei, porque achava que na altura ele devia era divertir-se. Até aos 10-11 anos, para mim, o futebol é divertimento.»

Por volta dos 10 anos, Aurélien lá foi para o Bordéus. Ainda jogava a avançado. «Só aos 14-15 anos é que o puserem no meio-campo, mas numa posição de número 10. Nos sub-18, recuou para número 8», conta Fernand. «Era bom!», diz por sua vez Tchouaméni. «Fui o melhor marcador em muitos torneios. Um dia, no torneio de Sens, o treinador recuou-me para jogar a 10. Preferi essa posição porque tinha mais a bola e mais influência sobre o jogo», contou ao site da Federação francesa.

Vem desse tempo a admiração por Lisandro López. «Quando era pequeno era adepto do Bordéus, mas era avançado e havia um avançado que me inspirava muito, o Lisandro López do Lyon. Tinha a camisola dele. Era mesmo um jogador de topo», disse Aurélien em abril deste ano, numa sessão de perguntas e respostas com adeptos do Mónaco. Esse Lisandro é o mesmo que brilhou durante quatro épocas no FC Porto antes de jogar em França. E que continua a jogar na Argentina, aos 39 anos.

O festejo de Tchouaméni a levar o dedo à testa quando marcou o golo que abriu caminho à vitória sobre a Inglaterra nos quartos de final é semelhante à forma como Lisandro celebra os seus golos. Muitos fizeram essa associação depois daquele momento, ainda que Tchouaméni tenha dito depois que não foi uma homenagem a Lisandro.

Enquanto crescia na formação do Bordéus, Tchouaméni iniciou o percurso nas seleções jovens francesas, onde passou por todos os escalões desde os sub-16. E continuou a estudar, até terminar a formação com o Bac S, diploma pré-universitário em ciências. Uma exigência da mãe, que é dirigente escolar. «Obteve o diploma indo talvez quatro ou cinco meses ao liceu nesse ano. Foi no ano do Mundial sub-17 e do primeiro contrato profissional», conta o pai: «Lembro-me que a mãe dizia-lhe: ‘OK, assinaste um contrato profissional. Mas quero o teu Bac.’»

«Em que posso melhorar?»

Estreou-se na equipa principal do Bordéus aos 18 anos, lançado por Gustavo Poyet e mais tarde sob o comando de Paulo Sousa. Ao fim de uma época e meia, o Mónaco garantiu a sua contratação. Chegou em janeiro de 2020, depois da saída de Leonardo Jardim. Foi pouco utilizado nessa época por Roberto Moreno, mas a partir da temporada seguinte, com Niko Kovac no banco, passou de esperança a certeza.

«É um ótimo rapaz, um jogador que quer melhorar todos os dias. Não se limitava a treinar, também perguntava: ‘Em que posso melhorar?’ Tive muitas conversas com ele», contou à Kicker o atual treinador do Wolfsburgo, a falar sobre a forma como Tchouaméni evoluiu: «Quando era mais novo achava que tinha de fazer tudo. Depois percebeu que tinha de se focar no seu principal papel como 6.»

Tchouaméni dedica muito tempo a ver futebol, a procurar conselhos e a tentar melhorar o seu jogo. «Trabalha com um psicólogo, um cinesioterapeuta, um osteopata, um preparador físico, um cozinheiro, um nutricionista», contou à France Football o seu agente, Jonathan Kébé: «Uma coisa de que gosto muito nele, e que esta geração não faz muito, é que ele procura os conselhos dos mais velhos. É capaz de ir ter com o Fabregas, de se sentar com ele e perguntar-lhe como era no Barça, o que fazia a Espanha ser mais forte do que os outros…»

O «Young King» que levanta a voz contra o racismo

Também dá muita importância à preparação mental. «É muito importante para mim», disse, contando que começou ainda no Bordéus a trabalhar com o preparador mental do clube: «Antes de cada jogo discutimos os objetivos, o que se passa à volta do jogo, a gestão das emoções. A questão de estar focado no que podemos controlar é muito importante e ajuda-me muito.»

Gosta de ler biografias e anota ideias ou frases inspiradoras no telefone, uma espécie de bloco de notas que anda sempre consigo. «Tenho citações de grandes desportistas ou de grandes personalidades», explicou numa entrevista ao site do Mónaco: «Frases que acho inspiradoras e que me motivam. Também anoto os objetivos para cada jogo. Tomo muitas notas. Tudo o que ouço, tudo o que vejo.»

Apaixonado pela cultura norte-americana, é fã da NBA. Tanto que no Bordéus os companheiros começaram a chamar-lhe Young King, numa alusão a LeBron James. Conheceu pessoalmente Colin Kaepernick, o jogador da NFL que lançou a tradição de ajoelhar durante o hino, em protesto contra o racismo e a violência policial. E ele próprio assumiu uma posição pública quando foi vítima de racismo num jogo com o Sparta Praga, em agosto de 2021.

Entre Liverpool e PSG, escolheu o Real Madrid

Em campo, Tchouaméni foi apurando qualidades. Chamaram-lhe polvo, pelo raio de ação no jogo e na recuperação de bolas, pelo potencial que rapidamente despertou a atenção dos gigantes da Europa. No final de mais uma grande época no Mónaco, acabou mesmo por sair. Klopp procurou levá-lo para o Liverpool, Mbappé tentou que fosse para o PSG, mas ele escolheu o Real Madrid, que pagou um valor estimado de 80 milhões de euros para o contratar. «O Kylian decidiu ficar no PSG e como já sabia que eu ia deixar o Mónaco quis saber se eu podia ir para o PSG, mas disse-lhe que preferia o Madrid», contou Tchouaméni na apresentação.

Tinha chegado à seleção francesa em setembro de 2021. E um mês mais tarde foi titular, ao lado de Pogba, na conquista da Liga das Nações, frente à Espanha. As lesões de Pogba e Kanté aceleraram a sua afirmação no meio-campo dos Bleus. E Tchouaméni tem estado mais que à altura da responsabilidade no Qatar, onde é a referência de solidez que permite maior liberdade aos companheiros.

«O papel do Aurélien é muito importante, porque nós jogamos com muitos jogadores ofensivos, com o Griezmann, que joga no meio-campo mas é um jogador ofensivo. Na frente estão o Kylian, o Ousmane (Dembelé) e o Olivier (Giroud). Na esquerda o Théo é muito ofensivo e eu também gosto de me projetar, por isso ele tem esse papel de ser o jogador que compensa e tem que ligar os espaços e recuperar as bolas», analisou Rabiot.

O grande golo frente à seleção inglesa, o primeiro que marcou em jogos oficiais pela França, deu mais notoriedade a Tchouaméni. Mas o papel do jogador dos Bleus que fez mais passes e percorreu maior distância até aqui neste Mundial é muito mais profundo que isso. No Qatar, ele está a dar razão ao L’Équipe, que em setembro lhe chamava «a melhor notícia» para os Bleus.