O Mundial do Qatar vai ser diferente em muitos aspetos e também na experiência dos adeptos. Em mais um artigo da série dedicada ao próximo Campeonato do Mundo, o Maisfutebol olha para o que pode esperar quem for ao Qatar. Dos custos – muitos – às restrições, da possibilidade inédita de ver mais que um jogo por dia a um mar de dúvidas, dos problemas com a informação disponível aos dilemas éticos, à boleia de um adepto que vai lá estar, já viveu quatro Mundiais e criou um site para ajudar outros adeptos a orientar-se.

Ainda há bilhetes para o Mundial?

Sim. O processo de venda entrou na última fase, que se prolonga até ao fim do Mundial. Os bilhetes podem ser comprados no site oficial da FIFA, que centraliza a venda de ingressos, e desde meados de outubro também em dois pontos de venda no Qatar. Apesar de alguns sinais de que em vários países, nomeadamente na Europa, a procura tem sido menor do que noutros Mundiais, os números divulgados pela FIFA apontam para que já tenham sido vendidos mais de 90 por cento do total de ingressos disponíveis, que será de 3.010 milhões, segundo dados do organismo. Em meados de outubro, a FIFA anunciou que tinham sido vendidos 2.9 milhões de ingressos e o responsável pelas operações no Mundial, Colin Smith, disse que alguns jogos já tinham «pouca ou nenhuma disponibilidade». Mas este número inclui os ingressos que foram distribuídos a parceiros comerciais ou institucionais da FIFA, oito por cento do total, parte dos quais podem ser devolvidos, voltando a ficar disponíveis. Cada federação tem também direito a oito por cento da lotação dos estádios nos seus jogos. Há ainda os ingressos para as fases a eliminar condicionados à presença de determinada seleção, que podem voltar a ser colocados à venda se a equipa não se apurar, sendo o comprador reembolsado. Portanto, não é possível ter noção exata de quantos adeptos estarão nos estádios. Como referência, no entanto, o total de 3.010 milhões deixará sempre o Qatar com assistências totais inferiores aos quatro últimos Mundiais. A FIFA revelou que entre os jogos com mais procura esteve o Portugal-Uruguai da segunda jornada da fase de grupos, mas não é possível estimar nesta altura quantos adeptos portugueses estarão no Qatar. De acordo com a FIFA, foram adeptos dos Estados Unidos, Arábia Saudita ou Inglaterra aqueles que mais bilhetes adquiriram. É precisamente a partir dos Estados Unidos que viajará Jason, adepto norte-americano responsável pelo site theworldcupguide, que esteve em todos os Mundiais desde 2006. Decidiu ir também ao Qatar e diz desde logo que a preparação foi «muito diferente» em vários aspetos, dos preços à «sobrecarga de informação» a gerir, passando pelo fator de desconhecimento, ou seja, a incerteza sobre o que se irá encontrar no país. «Tenho amigos que compraram bilhetes, começaram a ver alojamentos e ficaram frustrados e revenderam-nos. Acharam que era demasiado stressante gastar todo este tempo e dinheiro para uma experiência com tanto de desconhecido», conta.

Quais são os preços dos bilhetes?

Os bilhetes têm quatro categorias, correspondentes aos lugares nos estádios, e os preços variam também consoante os jogos. Os ingressos individuais começam nos 11 euros, preço da categoria mais baixa para a fase de grupos e reservado apenas a residentes no Qatar, e vão até 1620 euros, correspondentes à categoria mais cara para a final do Mundial. Para um adepto estrangeiro, o valor mínimo é de cerca de 69 euros para um jogo da fase de grupos. Essa categoria de bilhetes, segundo Jason, nem é mais cara do que noutros Mundiais: «Os bilhetes de categoria 3 na verdade são mais baratos do que em torneios anteriores.»

Estes são os valores dos ingressos divulgados pela FIFA. Os preços são apresentados na moeda do Qatar. Nesta altura, um euro corresponde a cerca de 3,6 rials.

Depois, há vários outros preços, associados aos chamados pacotes de hospitalidade, promovidos pela FIFA. São ingressos que dão acesso a tratamento especial nos estádios, com refeições e outras comodidades, e que custam no mínimo 950 euros – é essa a base indicada no site da FIFA para seguir, por exemplo jogos de Portugal. Segundo Gianni Infantino, presidente da FIFA, há três semanas já tinham sido vendidos 240 mil pacotes de hospitalidade, um recorde.

Também há borlas para alguns adeptos, a troco de boa publicidade. O Qatar criou aquilo a que chama uma rede de «Fan Leaders», recorrendo a 400 «adeptos e influencers», como lhes chama a organização, oriundos de 60 países. Num Mundial que tem estado rodeado de polémica sobre a forma como o país lida com os direitos humanos, entre várias outras questões, o Qatar espera que esses «adeptos líderes» contribuam com «criação de conteúdo e amplificação da mensagem» que a organização quer fazer passar. Estão sujeitos a um «código de conduta» segundo o qual, de acordo com a Reuters, devem publicar nas redes sociais comentários favoráveis e denunciar «comentários ofensivos, degradantes ou abusivos» sobre a organização do Mundial.

É preciso alguma formalidade especial para entrar no Qatar?

Sim. É obrigatório desde logo ter um cartão Hayya, um documento digital que funciona como autorização de entrada no país e é exigido a todos os que chegarem ao Qatar no período do Mundial, sejam adeptos, jogadores, técnicos, jornalistas, dirigentes, por aí fora. Esse cartão será necessário por exemplo para aceder aos estádios e dará também direito à utilização gratuita dos serviços de transportes públicos em dias de jogos. Na prática, será o documento de entrada no país durante o Mundial, uma vez que os vistos não relacionados com a competição foram suspensos neste período, uma forma de o Qatar tentar lidar com o enorme afluxo de visitantes que terá nesta altura: estima-se que sejam 1.2 milhões, num país com área oito vezes inferior a Portugal e que tem um total de 2.8 milhões de habitantes. Até aqui era também exigida pelo Qatar a instalação de uma aplicação chamada Ehteraz que tem por finalidade o controlo sanitário, associado às medidas anti-covid 19. Essa aplicação monitoriza a localização e vários outros dados, através do telemóvel. Mas o Qatar anunciou recentemente que a partir de 1 de novembro deixou de ser será necessária a pré-instalação dessa aplicação, deixando também de ser obrigatório um teste covid.

E como é com o alojamento?

É caro e a oferta não é muita. Esta é uma das questões mais complexas. Antes de mais, para entrar no Qatar é preciso ter alojamento marcado e essa informação precisa de constar no tal cartão Hayya. A exceção é se a visita tiver duração inferior a 24 horas e não indicar pernoita, mas essa informação tem de ser sempre transmitida. Depois, a capacidade de alojamento do Qatar é limitada, apesar da construção de vários hotéis ao longo dos anos. O que implica também preços altos. Há vários tipos de ofertas, que além de hotéis ou casas e apartamentos incluem aquilo a que a organização chama «fan villages», grandes aglomerados de habitações provisórias no deserto que têm preços, de acordo com o site oficial, a partir de 205 euros por noite. E depois há os barcos: três navios de cruzeiro ancorados ao largo de Doha, com capacidade total de cerca de 4 mil camas e preços que atualmente começam nos 470 euros por noite. Há adeptos a optar por pernoitar em países vizinhos, como os Emirados Árabes Unidos. «O alojamento é definitivamente a principal diferença» logística no Qatar, diz Jason. «O Qatar é muito diferente de outros torneios nesse aspeto. Tem poucas opções a preços baixos para adeptos. Tipicamente quando vamos a algum lado temos várias opções de alojamento de níveis diferentes. No Qatar os preços médios parecem muito mais altos. Quem esteja a reservar em cima da hora deve estar a sofrer com isso», explica: «Depois há muito desconhecido. A maior parte dos sítios são novos, com pessoas novas a trabalhar, não dá para perceber bem como vai ser a experiência.» Jason conta que conseguiu preços abaixo dos atuais por ter reservado mais cedo: «Eu reservei quando ficou disponível, no início do ano. No início não fiz nada, porque era muito caro e havia muita coisa desconhecida. Esperei algumas semanas e de repente dizia que não havia disponibilidade. Lia que havia muitos sítios a serem construídos que seriam libertados no portal no fim do verão, ou no outono. Não quis esperar. Reservei um lugar, tratei do cartão Hayya e no verão marquei os voos. Vou ficar num alojamento que foi marcado através do site oficial do Qatar. Como a maioria, porque só talvez há um ou dois meses é que começaram a deixar reservar através de uma terceira parte.» Para dar uma ideia da diferença, Jason dá o exemplo de outros Mundiais em que esteve. «Na Alemanha, tínhamos reservado um lugar para umas noites e tivemos de encontrar outro. Andámos de um lado para o outro tranquilamente, a facilidade de deslocação era tão melhor», conta. No Brasil, também fez uma marcação direta e saiu-lhe a sorte grande: «Procurei uma localização que fosse confortável para a minha mulher. Contactei uma mulher que acedeu alugar-me um quarto no apartamento dela, porque não encontrava mais nada. Era uma casa com vista sobre o Rio de Janeiro. Da varanda via-se a Estátua do Cristo Redentor. Descia até à praia e via um jogo na praia, com um coco na mão.»

Então, quanto custa ir ver um jogo do Mundial ao Qatar?

O valor pode variar em função de vários fatores, desde o ponto de partida ao tempo de permanência, passando pelos custos do alojamento ou da viagem aérea. Mas as estimativas apontam para que seja bem maior do que noutros Mundiais. Cálculos da associação internacional Football Supporters Europe citados pelo Guardian apontam para uma despesa de 2.770 euros para assistir a três jogos da fase de grupos, contra 1.000 euros na Rússia, há quatro anos. A estadia para todo o torneio custaria 6.500 euros. «É muito difícil para os adeptos saber quanto lhes custará o Mundial. Para reservar voos ou um hotel é preciso ter os bilhetes primeiro, por isso é preciso pagar para saber quanto vai custar», disse ao jornal britânico o diretor-executivo da Supporters Europe, Ronan Evain, muito crítico também em relação à informação disponível: «Há uma falta de informação consistente e a que há é difícil de perceber; nada está claramente explicado. Parece que a FIFA e o Qatar estão a fazer o seu melhor para convencer as pessoas a não ir.» Jason, que prefere usar apenas o nome próprio, também não tem dúvidas de que este Mundial lhe vai sair «mais caro» do que os anteriores em que viajou sozinho. Mesmo com reserva antecipada de alojamento e com recurso a pontos para a viagem aérea. Por outro lado, observa, «no Qatar posso utilizar transportes gratuitos e não tenho de comprar voos para outras cidades». Há quatro anos, na Rússia, este adepto gastou cerca de 3500 dólares, para uma viagem de dez dias, em que assistiu a quatro jogos e esteve em duas cidades. No Qatar conta gastar mais, mas o total dependerá das despesas que tiver no país, que não consegue ainda contabilizar. Será também uma estada de dez dias, apenas na fase de grupos. Normalmente, Jason procura apanhar também o início das eliminatórias, quando pode usar os dias sem jogos para viajar, mas não o fará no Qatar: «Há jogos todos os dias. E não sei se queria ter vários dias de folga no Qatar.»

Planear um Mundial é sempre complexo, diz Jason, explicando que esse foi o motivo por que criou o site há quatro anos, com vista ao Mundial da Rússia, utilizando a sua experiência. O seu primeiro Mundial foi o de 2006. Jason conta que, ao longo de quatro anos, vai pondo algum dinheiro de parte todos os meses, nesta altura 100 dólares, o que cobre as despesas de cada Mundial. São essas e outras dicas que dá no seu site. «Muitas vezes partilhava notas com amigos, mas era chato. Decidi construir um site para não ter de reescrever sempre o mesmo», conta, revelando que o site já teve visitas «de mais de 190 países». Há muita gente à procura de informação, especialmente para o Qatar. «É uma sobrecarga de informação. Muitas vezes é preciso o olhar de um adepto para tirar de longas listas de informação o que interessa. É a chave para tornar as coisas compreensíveis para outro adepto.» As dúvidas que lhe colocam são muitas, vão dos bilhetes a questões de logística como transportes ou parques de estacionamento. Muitas vezes, Jason não tem as respostas no imediato, mas usa a sua experiência para procurar informação fiável: «Tento encontrar informação tão verificada quanto possível.» Mas ele próprio continua com muitas dúvidas em relação ao que encontrará no Qatar. «O maior problema com o Qatar é que a informação não está a ser toda divulgada», diz, dando um exemplo: «As pessoas que conduzem até ao Qatar não sabem se poderão levar ou não o carro para o centro.» Ou ainda outro: «Os estádios são novos, muitos ainda não receberam eventos, por isso como vai ser com o controlo dos espectadores, a logística de entrar e sair? Eles estão a fazer o melhor, em teoria, para o transporte público ser a forma primária de movimentação. Mas em alguns momentos haverá 60, 70 mil pessoas a deixar o estádio. Toda a gente tem que usar o mesmo sistema. Todos os torneios se debatem com a logística do Mundial, mas eu acho que no Qatar, do ponto de vista dos adeptos, isto pode incomodar as pessoas. Tenho de imaginar longas filas», observa: «Mas estamos todos no Mundial, é stress bom.» Jason comprou bilhetes para viver a experiência de assistir a dois jogos no mesmo dia, mas tem dúvidas se isso será muito viável: «Acho que vai ser muito difícil. Provavelmente terá de se sair do jogo mais cedo ou chegar mais tarde ao outro.»

E há restrições no dia a dia para os adeptos no Qatar?

Sim. Muitas delas têm sido alvo de grande polémica, num país onde a homossexualidade é criminalizada, os direitos das mulheres limitados e manifestações públicas de afeto, sexo fora do casamento ou consumo de álcool são proibidos. O assunto tem sido muito debatido e o Qatar garante que «todos serão bem-vindos» e que não há, por exemplo, restrições quando à partilha de um quarto de hotel por «amigos não casados de diferentes géneros». Mas há países a recomendar cuidados especiais aos adeptos, aconselhando por exemplo mulheres a contactar a sua embaixada antes de se dirigirem à polícia local se forem vítimas de agressão sexual. A embaixada norte-americana, segundo a France Press, aconselha por exemplo mulheres grávidas a fazer-se acompanhar de uma certidão de casamento. O governo português enunciou algumas recomendações para quem visitar o Qatar, acessíveis no Portal das Comunidades Portuguesas. Alerta-se aí para o facto de «as leis e os costumes do Qatar» serem «muito diferentes dos de Portugal», notando por exemplo que «qualquer intimidade entre pessoas em público pode ser considerada ofensiva, independentemente do sexo, orientação sexual ou intenção». Quanto ao consumo de álcool, o governo português nota que «é um delito beber álcool ou estar embriagado num local público», acrescentando que «as autoridades do Qatar estão ainda a finalizar as políticas relativas à venda e consumo de bebidas espirituosas durante o Campeonato do Mundo», mas «a sua disponibilização e regras associadas serão diferentes das dos anteriores Campeonatos do Mundo da FIFA». Está de facto prevista alguma tolerância em relação ao consumo de álcool. A organização anunciou que será vendido álcool «em áreas selecionadas» nos estádios e também na única Fan Zone que existirá na competição, que fica em Doha e tem capacidade para 40 mil pessoas. Nassar Al-Khater, presidente do Comité Organizador, revelou também à Sky Sports que existirão «espaços para onde serão levados adeptos que tenham bebido de mais, para ficarem sóbrios». Mas a informação concreta sobre o que vai ser e não vai ser permitido ainda é pouco clara. A FIFA e a organização teriam prevista a divulgação de um guia para os adeptos, mas isso ainda não aconteceu. «É uma grande incógnita. Em teoria, a FIFA e o Qatar têm em mente fazer com que resulte. Mas acho que não percebem o que vai acontecer quando tiverem centenas de milhares de adeptos realmente apaixonados que não leram nada sobre regulamentos», observa Jason, admitindo várias dúvidas. «Em relação às restrições de liberdade de expressão, não sei. Lemos coisas a dizer que podemos dizer o que quisermos, mas depois lemos outras coisas que dizem que não vai haver tolerância.» Por tudo isso, admite alguma apreensão sobre o que pode acontecer: «Deixa-me algo nervoso. O que acontece se houver grupos de adeptos que se tornem demasiado barulhentos ou violentos? Como vão controlar isso? Há segurança de muitos países diferentes a ajudar. Como vai ser a coordenação disso? É um grande desconhecido. Vamos ver.» Jason deixa também a sua opinião sobre este assunto: «Acho que vai ter que haver cedências dos dois lados. O Qatar vai ter que ser mais moderado, e os fãs vão ter que ser muito mais conscientes do que estão a fazer. Eu gosto de ir como adepto, divertir-me, não vou para me embebedar e andar a correr desenfreado pelas ruas, por isso por mim pessoalmente não estou demasiado preocupado. Sempre que se vai a outro país entra-se na cultura desse país. Nos EUA também há muitas coisas culturais com que as pessoas não concordam. Eu pretendo tratar as pessoas como seres humanos e com respeito e espero receber o mesmo respeito de volta.»

O Qatar levanta muitas questões complexas, nomeadamente no que diz respeito aos direitos humanos e à forma como foram tratados os trabalhadores envolvidos na construção dos estádios e as infraestruturas, que conduziu a milhares de mortes. Houve muitos apelos ao boicote ao Mundial. Jason é um dos adeptos que decidiu ir. Mas este norte-americano que cresceu em Atlanta a jogar «soccer» e se apaixonou pelo Mundial em 1994, quando os Estados Unidos receberam a competição, admite que o faz com sentimentos complexos: «É muito conflituoso. Faz-me lembrar quando se soube da corrupção dentro da própria FIFA, em 2015. Como adepto fica-se zangado, odeia-se. Mas adoramos tanto futebol tanto que continuamos a participar. É muito difícil. Acho que na cabeça de todos os adeptos estará o facto de as pessoas terem construído os estádios em condições horríveis. Não tenho uma resposta eloquente. Respeito toda a gente que boicote. Mas é uma situação muito conflituosa.»