«Seleção: escolha fundamentada e criteriosa; eleição; conjunto de coisas escolhidas; (aplicado ao desporto): conjunto dos melhores atletas, em qualquer modalidade, escolhidos para representarem um país ou uma região num encontro desportivo»
In Dicionário da Língua Portuguesa – enciclopédia e dicionários da Porto Editora


A menos de 200 dias do Brasil-2014, o cheiro a Mundial vai começando a invadir os olfatos de quem gosta mesmo de bola.

A retórica futebolística, vertida nos media e também da boca de jogadores, treinadores e dirigentes, recai, em alturas como esta, para uma noção patriótica levada ao extremo, como se todo um país pudesse caber dentro de uma seleção.

Estas coisas têm sempre um lado simbólico muito forte. Não por acaso, há décadas se usa a expressão de «equipa de todos nós» quando falamos da Seleção Nacional. De tal modo essa expressão é dominante que já se torna difícil abstrair e, com alguma distância, podermos pensar se isso fará, de facto, sentido.

A contradição é notória: numa altura em que falamos cada vez mais em «globalização», «abolição de fronteiras», recuo do conceito de «nacionalismo», libertação de amarras do que herdámos à nascença, a verdade é que em momentos como Campeonatos do Mundo ou Campeonatos da Europa de futebol a noção de «orgulho pátrio» renasce com especial intensidade.

Um exercício interessante para identificarmos isso seria fazer uma análise ao conteúdo das intervenções da «vox populi» dos fóruns e antenas abertas de rádios e televisões no dia seguinte ao fantástico triunfo da Seleção na Suécia, que garantiu o apuramento ao Mundial-2014: por um dia, só um dia, a maré de lamentações (justificada) sobre o estado do país foi substituída por um súbito «orgulho em ser português».

Uma parte da segredo do futebol tem a ver com esse poder, quase mágico, de assumir uma importância que vai muito para lá do que se passa dentro das quatro linhas.

A questão está em saber quanto desse poder tem correspondência com a realidade. A Grécia foi campeã da Europa em 2004 e foi nos anos seguintes que o desastre financeiro e económico aconteceu. Nada a ver com o título europeu, claro, mas este não impediu um milímetro do pior que estava para vir.

Por cá, o sentimento geral em torno da Seleção tem resolvido essa contradição de forma curiosa: quando as coisas correm mal (felizmente, têm corrido muito poucas vezes, nas últimas duas décadas) caímos para o lamento de «já sabia, eles na seleção não dão tudo, é sempre a mesma coisa»; quando correm bem (paradigma dominante desde 1996, só com a exceção de 1998, graças ao sr. Batta) lá volta a tal questão do «orgulho pátrio».

Pode até ser uma defesa coletiva a um comportamento que, mesmo geralmente ganhador nos últimos 15/20 anos, tem tido uma tentação para o sofrimento, deixando quase sempre para o fim a resolução das coisas.

Voltemos, então, à dúvida inicial desta crónica com mais perguntas do que respostas. O que é uma seleção? Pode ela, no seu comportamento dentro do campo, verter o sentimento de todo o um país? A forma como a Seleção de Paulo Bento joga manifesta as características essenciais do povo português?

A ideia pode nem ser assim tão disparatada. O Brasil foi, durante décadas, a seleção-espetáculo, alegre e virtuosa, mas por vezes pouco eficaz. Faltava-lhe organização e sangue frio. Na verdade, uma boa definição do que é o povo brasileiro.

A capacidade dominadora da «Nationalmannschaft» bate certo com a imagem que temos da Alemanha. Isso de associar uma seleção a um povo, afinal, podia nem ser assim tão descabido.

Mas depois vieram os «naturalizados». E aí a coisa complica-se verdadeiramente. Se repararmos, a definição com que começo esta crónica nunca aponta, em lado algum, a questão da «pureza» no local de nascimento.

Há quem diga que pertencemos ao lugar onde fomos felizes. É, pelo menos, uma noção poética. E levou, por exemplo, à decisão de Diego Costa, que alegou precisamente a gratidão que tem por Espanha, país onde conseguiu vingar ao mais alto nível, apesar de ainda se «sentir brasileiro».

Bonito, Diego, mas a questão é mais esta: se meses antes tivesse agarrado a titularidade no «escrete», esse sentimento de gratidão por Espanha teria tido algum peso? O mesmo se terá perguntado Deco, sem dúvida um dos melhores internacionais por Portugal nos últimos anos, mas que antes alimentou esperanças em ser chamado pelo Brasil e só depois abriu caminho à seleção das quinas (com aproveitamento indiscutível, aliás).

Liedson foi bem mais discutível (mas ajudou de forma decisiva à chegada ao play-off do Mundial-2010, com aquele golo de cabeça na Dinamarca), Fernando é uma discussão que poderá abrir-se nos próximos meses.

Aberta a «caixa de Pandora», passa a ser quase impossível estabelecer um critério. O conceito de «seleção» é hoje mais lato e, com essa dispersão, fica ainda mais difícil associar directamente uma «equipa nacional» com um «país inteiro».

Mas há sentimentos poderosos que talvez só mesmo o amor ao seu país poderiam gerar. A exibição sobrenatural de CR7 na Suécia terá sido o melhor exemplo de como um só jogador conseguiu carregar todo um país rumo a uma qualificação para um Mundial. No momento decisivo, o melhor português levou não só a sua seleção, mas o seu país aonde todos desejaríamos estar. As declarações de Ronaldo logo após o apuramento reforçam esta ideia, quando sublinhou: «Sabia que precisavam de mim».

Se Cristiano não tivesse nascido em território português, teria sido capaz de tal feito?


«Nem de propósito» é uma rubrica de opinião e análise da autoria do jornalista Germano Almeida. Sobre futebol (português e internacional) e às vezes sobre outros temas. Hoje em dia, tudo tem a ver com tudo, não é o que dizem?