Faltam exatamente oito meses para o jogo de abertura do Mundial-2014.

A 12 de junho, em São Paulo, no Arena Corinthians (que é popularmente designado no Brasil como «Itaquerão»), a partida de arranque do primeiro Campeonato do Mundo de futebol num país do continente americano nos últimos 20 anos (desde os EUA-1994) será, certamente, disputada com as bancadas cheias.

Só na primeira fase de pedidos de bilhetes, que terminou anteontem, mais de 700 mil adeptos do todo o Mundo pediram ingressos para o jogo inaugural (excedendo por dez vezes a capacidade do estádio paulista).

Se esse dado é suficiente para perceber que o Mundial-2014 será um sucesso a nível da afluência de público e do interesse mediático, a verdade é que o Brasil, enquanto país organizador, tem sentido dificuldades noutras áreas que são fundamentais para quem pretende organizar um megaevento da dimensão de um Campeonato do Mundo de futebol.

Os 12 estádios vão estar prontos a acolher os jogos? Vão. Seis deles, aliás, já receberam o ensaio geral que a FIFA prepara um ano antes de cada Mundial, a Taça das Confederações. Os restantes seis podem falhar o meio ano de segurança exigido pela entidade de Blatter, para dar tempo para os eventos-teste, mas com mais ou menos eficácia no calendário, têm uma margem de alguns meses para que fiquem estruturalmente preparados.

O problema é o resto. Tudo o resto. Os atrasos e derrapagens nas obras de finalização dos seis estádios que faltam entregar à FIFA. Os acessos nas 12 cidades que acolhem partidas. Os problemas em projetos de infraestruturas de apoio, como aeroportos, transportes urbanos e interurbanos e até hospitais. O clima de contestação pública, exibido com violência na Confederações, e que pode reavivar-se, com ainda mais intensidade, durante a Copa.

Jessica Corais, jornalista sediada no Rio de Janeiro e especialista em futebol brasileiro, comenta para o
Maisfutebol: «Tudo no Brasil funciona desta forma, com atrasos. Atrasos é algo completamente normal para os brasileiros, infelizmente. Nunca é cumprido o prazo para a entrega das obras, sejam elas quais forem. Devemos dividir as sedes da Copa em duas, aquelas que receberam jogos das Copa das Confederações e as que não receberam.»

Podemos, por isso, falar em duas preparações para o Mundial: nas seis cidades que participaram na Confederações e nas restantes seis. «No caso das que receberam a situação é mais fácil, pois já se sabe o que precisa corrigir e isso está sendo feito, mesmo que com muito atraso», reforça Jessica Corais.

«Já aquelas que não receberam jogos e que terão seus estádios prontos na véspera da competição não haverá tempo para testes. Com isso, elas precisarão é se basear no que ocorreu em outras cidades durante a Copa das Confederações para não repetir o erro. Isso sabemos que é longe do ideal ser feito, até porque no Brasil cada estado tem sua particularidade. A maior preocupação, sem dúvida, são nessas localidades que não receberam jogos da Copa das Confederações», destaca a repórter, licenciada em História pela Faculdades Integradas Simonsen.

Uma questão de exigência

O Euro-2004 em Portugal foi um bom exemplo no que toca às exigências que uma grande competição internacional hoje comporta. Não basta ter os estádios prontos. Os serviços de apoio têm que funcionar. E os primeiros sinais, nesse aspeto, foram tudo menos tranquilizadores.

Recuemos oito meses e lembremo-nos do que se passou na inauguração do novo Mineirão, um dos principais estádios do Mundial-2014.

A 4 de fevereiro passado, 60 mil espetadores encheram o mítico recinto, agora remodelado para fazer parte do menu de recintos a acolher jogos do Mundial. Em duelo, os dois eternos ricais de Minas, Cruzeiro e Atlético Mineiro (curiosamente, em ano desportivo muito positivo para os dois).

Tinha tudo para ter sido uma grande festa, mas as falhas nos pormenores foram tantas que a Minas Arena, concessionária responsável pela administração do estádio, foi alvo de multa pesada por parte do governo estadual: um milhão de reais (perto de 370 mil euros).

Na altura, o secretário da Secopa (Secretaria Estadual para Assuntos da Copa do Mundo), Tiago Lacerda, assumiu que tinham ocorrido erros «inaceitáveis». Entre eles, a falta de água para venda aos adeptos, problemas na emissão de bilhética, com longas filas durante a troca dos vouchers, e a inexistência de casas de banho em algumas zonas do estádio.

O relvado, alagado por fortes chuvas na véspera, não teve drenagem eficaz e o engenheiro responsável pelo campo explicou que o processo não foi tinha sido feito de forma ideal «pelo grande número de fibras na relva» uma exigência da FIFA. Durante o jogo, mais problemas: os bares dos estádios estavam fechados e os adeptos não tinham nada para beber ou comer. Ricardo Barra, presidente do consórcio, até teve que pedir desculpas aos adeptos.

Os eventos-teste servem mesmo para isso, para detetar falhas e corrigir o que não correu bem? Certo. Mas, a oito meses do jogo de abertura, permanece a dúvida: haverá tempo para que tudo corra bem?

Menos de 10 por cento de obras prontas

Bem pior do que a situação nos estádios é, de facto, o que se está a passar fora deles. Muitas autarquias no Brasil começam até a desistir de projetos que tinham relacionados com o Mundial, por começarem a perceber que, simplesmente, não vão ter capacidade de os entregar a tempo.

Erros de planeamento, relativamente comuns no Brasil, estarão na base deste panorama constrangedor. A falta de capacidade de entendimento entre autarquias, governos estaduais, governo federal e construtoras agrava, em alguns casos, a situação.

Num total de 53 projetos de «obras de mobilidade» (termo utilizado para definir projetos que visem melhorar ou aliviar o trânsito nas 12 cidades-sede), apenas quatro estão prontos.

Um cenário que mesmo os mais pessimistas não antecipariam quando, em janeiro de 2010, o governo federal definiu as obras de mobilidade urbana para a Copa.

Esse plano previa, e já com alguma folga, que até ao fim de 2012 (há quase um ano!), a esmagadora maioria desses 53 projetos estariam prontos.

À medida que a execução dos projetos foi mostrando atrasos, o governo federal fez duas atualizações para a conclusão das obras de mobilidade: primeiro para janeiro de 2013 (data completamente falhada), mais recentemente para as semanas que antecedem o jogo inaugural. Em cima da hora, portanto.

Está visto: um Mundial no Brasil será, entre muitas outras coisas, uma história de projetos com adiamentos sucessivos, mas sempre com uma ideia base, que se enquadra no espírito e na forma como o povo brasileiro tem de encarar a vida: «Pode até faltar uma coisa ou outra, mas a Copa vai funcionar».

«Vai estar pronto? Vai. Esquece isso, os estádios irão estar prontos. Vai faltar uma pintura na calçada, pode até faltar. Pode até faltar uma coisa ou outra, mas vai funcionar».

As frases não foram ditas por um adepto descontraído à saída de um estádio. Saíram da boca do próprio diretor-executivo do Comité Organizador Local (entidade brasileira que faz a ligação do país organizador com a FIFA), Ricardo Trade, em grande entrevista dada em janeiro passado ao site UOL Esporte, q uando faltavam 500 dias para o Mundial-2014.

O choque da realidade

Desde essa posição (com um misto de confiança e descontração) do CEO do COL, mais de metade da «contagem decrescente» já foi cumprida.

Nove meses e meio depois dessa entrevista, e a precisamente 243 dias do arranque, o choque da realidade não está a dar razão a Ricardo Trade.

Na melhor das hipóteses, uma boa percentagem das 53 obras de mobilidade ficarão prontas em cima do acontecimento. Mas já ninguém acreditará, nesta fase, que vão entrar todas na fotografia do Mundial-2014.

Dado especialmente preocupante: uma boa parte das 49 obras que faltam terminar ainda não atingiram uma taxa de execução de 50%. Só em Porto Alegre (estado do Rio Grande do Sul), é de prever que dez obras de mobilidade caiam nas próximas semanas, por insucesso dos projetos.

Citado pelo jornal «Zero Hora», Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas, antecipa: «A minha impressão é que a maioria não ficará pronta a tempo. E aí começarão a utilizar os planos B, C, D e E: suspender aulas escolares, restringir fluxo, usar bolsões de estacionamento. A mobilidade vai ficar para depois, e espero que não fique para a eternidade».

Entre as quatro obras de acessibilidade já prontas, apenas uma tem uma envergadura capaz de ter vantagens signficativas para a mobilidade da cidade-sede: a construção do Boulevard Arrudas, em Belo Horizonte (Minas Gerais), uma larga avenida de três quilómetros e meio, com ciclovia e viadutos.

Alguns dos projetos que ainda nem a metade chegara da sua execução têm importância acrescida no esquema global que as cidades têm preparadas para a sua mobiliade em dias de jogos: são os casos do corredor BRT da Avenida Dedé Brasil, acesso ao Arena Castelão, em Fortaleza (Ceará). Em Recife (Pernambuco), um corredor de autocarro só vai ficar pronto... depois do Mundial.

Como é que isto se explica, se, nos últimos dois ou três anos, o discurso oficial das autoridades brasileiros têm sido o de dar prioridade máxima à preparação e organização do Mundial-2014?

Ricardo Leitão, secretário da Copa-2014 no Recife, aponta a prioridade à construção dos estádios como um dos fatores que levaram ao atraso no resto: «Tínhamos inicialmente 12 obras viárias e mais a construção da arena, que seria só para a Copa, mas a FIFA quis antes»

O que será de Manaus?

Nenhuma cidade-sede passa incólume ao teste da mobilidade, mas há um caso que está a preocupar especialmente as autoridades: Manaus.

A capital do estado do Amazonas, onde se encontra o Arena Amazônia, um dos 12 estádios que acolhem jogos, acusa atrasos muito sérios. Com um trânsito caótico e excesso de veículos identificado em todos os estudos de mobilifade, Manaus ficou sem monotrilho e corredor BRT, por «excesso de questionamento dos órgãos de controlo», explicou o coordenador da Unidade Gestora da Projeto Copa no Estado, Miguel Capobiango Neto.

Sem obras de mobilidade para o Mundial, prevê-se dificuldades nos acessos ao Arena Amazônia, nos quatro jogos que receberá durante o Mundial.

A pressão das manifestações

A construção dos estádios teve sempre a supervisão da FIFA e o Comité Organizador Local foi tendo que cumprir os prazos intermédios que a entidade suíça foi exigindo. Tudo o resto tem foco, planeamento e logística brasileira e aí as coisas são bem mais complicadas.

Pedro da Luz Moreira, diretor do Instituto dos Arquitetos do Brasil e professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, traça uma avaliação muito negativa, citado pelo «Zero Hora»: «Os projetos vêm sendo feitos de uma maneira muito atabalhoada. As cidades já têm sistemas de transportes que funcionam de determinada maneira e as obras têm de ser inseridas para dar eficiência ao sistema».

As falhas nos projetos levaram também a um aumento brutal dos custos e, por arrasto, do preço total do megaevento. Nada que, para os portugueses, sejam novo ou sequer estranho. Mas no caso do Mundial-2014, os números chegam a assustar.

Os números vão, certamente, ficar desatualizados em breve, mas andarão, neste momento, nos 26,5 mil milhões de reais (cerca de 9 mil milhões de euros) para todo o Mundial. Os quatro projetos de mobilidade já terminados tiveram um custo de 260 milhões de reais (perto de 88 milhões de euros) e os 49 que faltam poderão custar qualquer coisa como 8,6 mil milhões de reais (cerca de 2,9 mil milhões de euros).

A perceção pública do que vai custar ao contribuinte brasileiro o Mundial-2014 teve um ponto de viragem na Confederações.

A violência das manifestações em várias cidades apanhou de surpresa as autoridades. E afetou a própria mensagem que estava a ser passada pelo COL, pelo governo federal brasileiro e até pela FIFA.

A pressão das manifestações (iniciadas nos dias que antecederam a prova, por uma questão de preços dos passes de transporte em São Paulo) chegou à porta dos estádios e constituiu uma espécie de «fim de lua de mel» entre o povo brasileiro e as autoridades, em relação ao Mundial-2014.

O «Padrão FIFA» que é exigido para os estádios do Mundial passou a ser reivindicado pelos manifestantes para infraestruturas sociais como hospitais ou escolas. E a verdade é que isso complicou ainda mais a prossecução dos projetos, que já estavam com atrasos significativos.

Quanto ao aeroportos, o projeto do governo federal foi o de somar, até ao Mundial, 71 aos 129 já existentes no país. Dois dos mais importantes (Rio de Janeiro e Belo Horizonte) serão privatizados.

O fracasso dos VLT

Foi uma sigla na moda até há algum tempo quando se falava na preparação do Mundial-2014. Mas caiu em desuso, pelas piores razões: os projetos de VLT (Veículos Leves sobre Trilhos) pareciam ser atrativos para contornar o trânsito automável das principais cidades brasileiras.

Cinco cidades quiseram aderir à ideia nos planos para a Copa, mas a oito meses do arranque é já certo que isso não acontecerá em três delas: Brasília, Manaus e São Paulo não passaram nos testes de fiscalização e/ou nos processos de expropriações e indemnizações que eram necessários para a concretização dos projetos.

Na melhor das hipóteses, só se poderá andar de VLT durante o Mundial em Cuiabá e Fortaleza. Mas só se ambas recuperem os atrasos que têm nos respetivos cronogramas de execução.

Há quem garanta que Deus é brasileiro. Para lá das crenças religiosas de cada um, não será arriscado afirmar que o Brasil vai precisar de ajuda divina nos próximos meses para que tudo corra na perfeição no Mundial-2014.