Em letras gordas como um grito. VIVA, SAN IKER CASILLAS! Justiça feita, ao som de martelo, a todos os mártires da baliza. A Buffon, que perdeu, mas também aos outros, aos que fazem vida de desmancha-prazeres, negando noite após noite o que tantos desejam: o golo.

A Barbosa também, crucificado pelo erro que fez escola todos os anos que vieram depois. O primeiro poste é teu. Esmagavam-me o ombro que nem tenazes as mãos dos mais velhos, senhores daquela verdade dogmática, que sublinhava que a bola, e mesmo que o mundo ficasse virado do avesso, não podia entrar por ali. Nem que fosse Ghiggia ou qualquer uruguaio regressado do inferno. Nem que viessem milhares de fantasmas dos que viveram esse dia de Maracanazo como nenhum outro, de dedos lascados de tanto morder e punhados de cabelos arrancados nas mãos.

Um guarda-redes cerra os dentes e sai, de olhos nos olhos, numa luta desigual. Touro enraivecido perante o cavaleiro, dono do tempo, do espaço, senhorial, armado com bandarilhas aguçadas. Ouve o pasodoble que dá ritmo às holas nas bancadas e soa-lhe a marcha fúnebre, mas não consegue fintar o destino. Enrijece os músculos de marine e parte para o choque frontal. Tantas vezes comeu o pó da arena e sentiu os ossos a ranger, as costas a dobrar, é o seu tempo a chegar.

Revive Iashin, Zoff, Fillol, Pfaff, Desaev, Bats e Schumacher num flashback, naquela corrida de fim mais-que-anunciado. Bola no ar, tem de ser dele. Um cruzamento só pode ser dele. Um remate de longe, não há outra hipótese, de quem mais poderia ser? Não pode falhar. Um dedo partido não é nada, uma costela desencaixada é um ferimento de guerra que exibe orgulhosamente. O corpo foi transformado numa sala de troféus, cada um arrumado num pedaço de carne que vai perdendo firmeza.

Aquela bola vem traiçoeira. Agarra, agarra, não podes falhar agora. Em nenhum outro profissional, o erro ocupa tanto espaço como num currículo de guarda-redes. É preciso ser-se um dos melhores do mundo para escapar à crítica: Kahn em 2002 e Cech em 2008, por exemplo. Um frango pode valer pontos, um remate ao lado de um companheiro é sempre azar, haverá mais oportunidades. De nada vale ser louco, fazer do corpo uma parede de nódoas negras, colocar as mãos onde os outros pisam, porque um frango tem o peso de dez defesas à Gordon Banks sobre a linha, após outros tantos cabeceamentos de Pelé.

O guardião-marine regressa à baliza. Mais do que qualquer outro em campo, foi ele o humilhado. Caminha demoradamente, dizendo que «não», entre milhares de palavrões, enquanto meia multidão aplaude o inimigo e a outra metade o assobia. O goleador dá a volta à arena depois de mais um golo, festeja com os das suas cores, é invejado pelos das outras. O guarda-redes é o inimigo da festa, merece quase tantas vaias como o árbitro, o único que é mais detestado do que ele.

Paradón de Casillas. Esta é para ti, Barbosa. O melhor de 50, crucificado em pleno relvado por anos a fio. Para ti e para todos os outros. Para ti, Higuita! Raios partam o velho do Milla! Para ti, Bats. Para ti, Schmeichel. Letras gordas, se faz favor. Foguetes e festa. Uma garrafa de champanhe no quarto de hotel. Melhor, a letras garrafais: SAN CASILLAS parece-me muito bem.

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião da autoria de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui às terças e sextas-feiras