Este texto acaba com a palavra adeptos. Pelo meio divaga sobre a pressa que envolve o futebol moderno, por contraste com a calmaria das décadas passadas, com opiniões que dificilmente agradarão a quem consome futebol em massa.  
 
Está feito o resumo, pode passar aos comentários. De nada. Se preferir ler o artigo, aqui fica. Em diferido. 

 
O século XXI engavetou, a pouco e pouco, questões que tinham toda a lógica uns anos antes. «Ainda tens rolo para mais uma foto?». «Será que este jogo vai caber na minha disquete?». «Quanto tempo vai demorar o Beto a agarrar a titularidade no Real Madrid?».
 
A estas, acrescento outra, quando se apanhava, de surpresa, um jogo de futebol num dos canais generalistas: «Isto é em direto?».
 
Era um mundo diferente, em que os jogos em diferido poderiam ocupar espaço nas grelhas. Até horário nobre ou perto dele. O mundo em que havia interesse em ver o que já tinha acontecido. Fazer o que já foi feito.
 
E nem nos referimos, apenas, a produtos de segunda linha. Os diferidos mais famosos dos anos 90 talvez sejam mesmo os jogos do Benfica na SIC, ao domingo. Jogava-se a meio da tarde, o canal passava-os umas horas mais tarde. Talvez pela narração do saudoso Jorge Perestrelo, o barco aguentava-se.
 
A RTP cometeu um crime de lesa-pátria, quando não passou em direto o FC Porto-Lazio de 2003, uma meia-final europeia. Um dos melhores jogos de sempre no Estádio das Antas.
 
Não era difícil, também, apanhar um jogo da Liga inglesa no Desporto 2.
 
A TVI alternava diretos com diferidos nos jogos da Liga espanhola e italiana. Até brasileira, de madrugada.
 
Tudo isto obrigava a minúcia na hora de olhar para o ecrã do televisor, à procura do sinal que garantia que aquilo estava mesmo a acontecer ali e agora. Tinha um amigo que falava nos jogos «em direto» e «em indireto», como os livres, o que dava uns bons segundos de confusão a tentar perceber se era live ou não.

Mas esse era o único problema. O resto era puro prazer.
 
Víamos menos futebol, conhecíamos bem menos jogadores mas não arrisco dizer que éramos mais infelizes. 
 
O spoiler não era o monstro que hoje é e guardávamos na memória o que mais nos interessava. O que era mais especial. Muitas vezes com exageros. Já contei, por exemplo, como tinha a certeza que Ronaldo tinha deixado para trás uns oito jogadores do Compostela, antes de ter a certeza (e a desilusão) de que foram só quatro.
 
Liamos menos sobre direitos televisivos e mais sobre livres diretos. Discutíamos a perspetiva do nosso 10 e não da linha do fora de jogo. Preferíamos os espectadores aos telespectadores.
 
Sabíamos menos, é certo, mas a ignorância pode ser uma inesperada virtude, diz-nos Iñarritu. Ou, pelo menos, fazer-nos mais felizes. No fundo, é ramos mais especialistas e menos polivalentes. 
 
Vivíamos com menos pressa e, o melhor de tudo, nem nos apercebíamos da sorte que tínhamos. Mesmo que em diferido, tínhamos futebol em canal aberto, onde hoje só há competições europeias, seleção e Taça da Liga. Reclamávamos menos e hoje recordamos, de quando em vez, o privilégio que era.
 
Carlos Queiroz disse, em tempos, que o futebol caminha para ter figurantes pagos e não espectadores nos estádios. Uma parte mais do espetáculo. É o perigoso caminho que se trilha enquanto mudamos de canal, vemos o último vine ou pesquisamos no Youtube.
 
Deixámos de ver futebol. Passamos a consumi-lo, como um viciado, a quem até os 15 segundos de publicidade online antes do vídeo incomoda. Somos menos pacientes.
 
Acabaram os diferidos, remetidos para uma estreita gaveta nos canais de desporto, proliferam os diretos, os streams, quase todos ilegais.

Hoje, nada nos escapa.
 
Vemos mais futebol, eu sei. Mas somos menos adeptos.
 
 «Cartão de memória» é um espaço de opinião/recordação, com pontes para a atualidade. Por vezes sério, por vezes leve. Como o futebol, no fundo. Pode questionar o autor através do Twitter.