Os meus olhos doem-me! Não os dentes, isso já passou. É que o Chiellini não é uma bota velha, ainda se mastiga bem. Doem-me os olhos! Sinto que já fizeram de mim o Alex, o rufia louro de Kubrick na Laranja Mecânica, com arames a evitar que as pálpebras se retraiam e a obrigarem a que continue a olhar. Nas televisões à minha frente (dez, dez...) passam imagens de mim. E, depois, vem a náusea. Associam mordidelas ao nojo, para que as renegue. Primeiro imagens de felicidade. Depois, a violência. A minha boca a fechar. E a sensação de vómito. Tratamento de choque! Antes, Guantanamo, Diego! Tu sabes o que é isto! Estou preso a uma cadeira, obrigado a recalcar estes acessos de loucura. A empurrá-los para baixo. Para trás do estômago, para que não volte a ficar mal-disposto. Para o fundo de mim mais uma vez. Grita-se para que seja acompanhado por um psicólogo. Já vários o disseram. Deito-me num divã e falo do meu Passageiro Sombrio. E? Ele vai embora? Prometem? Continuo a marcar golos, depois, continuarei a ser o melhor do mundo na área? Se ele se vai embora que jogador serei eu depois? Um Agüero, um Fernando Torres? Meu Deus, já tiram selfies comigo em reclames de autocarro, e eu de boca aberta. Em fúria, como sempre que marco um golo. Todo eu sou fúria canalizada para uma baliza e nunca ninguém percebeu isso... Castigo inédito! Exemplo! Reincidente! Bad boy! Vilão! Nove jogos. Quatro meses. O monstro foi apanhado. Fui o meu lado negro mais uma vez. A terceira vez que mordi. Vampiro. Canibal. Para mim, sempre valeu tudo naquela luta desleal com os centrais. Sou tão rufia quanto eles. Ando com os meus droogs a rondar e atiro-me a eles. Não tenho medo nenhum no seu bairro, é uma luta de rua. E vale tudo. Uma simulação. Um penálti inventado. Uma mordidela, sim. Nunca foi de murros e cotoveladas, isso é para meninos. Isso é para os outros, e esses não ficam nove jogos de fora. Cabeçadas, crânios afundados, pernas partidas, entradas para magoar, e é a mordidela que é infame. A mordidela que desaparece ao fim de uns minutos. A mordidela que escapa ao meu controlo. A essa obsessão de marcar, ganhar, destruir o adversário. Mas, pronto, eu vou voltar. Entretanto, se quiserem visitar-me vou estar por aqui. Longe de um estádio, a não ser que vá com trela e açaime. Ou nem isso. A minha porta ficará aberta a todos. A todos! Mesmo aos muitos que batem e ficam impunes, que desconhecem esta sorte. Não faz mal! É que um monstro também precisa de amigos!

«Não crucifiquem mais o Barbosa» é um espaço de opinião/crónica da autoria de Luís Mateus, subdiretor do Maisfutebol, que aqui escreve todos os dias durante o Campeonato do Mundo.  É inspirado em Moacir Barbosa, guarda-redes do Brasil em 1950 e réu do «Maracanazo». O jornalista é também responsável pelas crónicas de «Era Capaz de Viver na Bombonera», publicadas quinzenalmente na  MFTotal. Pode segui-lo no  Twitter ou no  Facebook.



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