Mesmo que não houvesse fotos, ou filmes, dos dois extremos que desenham o arco da vida pública de Alexandre Villaplane, seria fácil imaginá-los. A nossa memória coletiva preenche os espaços vazios desta história, em primeiro lugar com centenas de fotos a preto e branco sobre futebol nos anos 30. Depois, a meio do arco, com sons de jazz, fox-trot e charleston, que saem de cafés enevoados pelo fumo, onde gangsters e marginais combinam um novo golpe nas corridas de cavalos. E, por fim, com as centenas de filmes e documentários sobre a II Guerra Mundial, onde botas militares marcham sobre Paris e um pelotão de fuzilamento espera por nós, num bosque, pela manhã.

É aí, do lado errado dos fuzis, que vamos encontrar o protagonista desta história. Mas só mais à frente. Para já, antes do castigo ao traidor, passemos em revista o primeiro ato, o da glória desportiva de Villaplane, o primeiro capitão de França em Campeonatos do Mundo de futebol.

História em Montevideu

Nascido em Argel, em 1905, Villaplane foi pioneiro do rico filão argelino, que ainda hoje valoriza o futebol francês. Quando a família se mudou para o Sul de França, em 1919, o jovem adolescente já tinha o gosto pelo futebol e uma exuberância física que lhe permitiu, com apenas 17 anos, estrear-se pela equipa principal do FC Sète, onde permanece até cumprir o serviço militar. É aí que, jogando em várias seleções do exército, dá nas vistas pelo jogo impetuoso, pela coragem física nos duelos e no jogo pelo ar. É um médio de combate, numa altura em que o meio-campo é zona pouco povoada, onde o pulmão faz toda a diferença.

Villaplane ao centro, em cima, nos tempos do Sète

Estreia-se pela seleção principal em 1926, ainda antes de completar 20 anos, e consolida a reputação de um dos melhores jogadores de França. O profissionalismo encapotado, que vai permanecer até 1932, não impede que se movimentem somas elevadas. Atraído por elas, troca o Sète pelo Nîmes, em 1927, e o Nîmes pelo Racing de Paris, dois anos mais tarde. Pelo meio, acumula jogos pela seleção, 25 ao todo. Quatro deles são contra Portugal, como este realizado no estádio de Colombes, em março de 1929, que os franceses vencem por 2-0:



É o rei dos médios do futebol francês, mas ainda não é capitão de equipa. Esse estatuto só chega no arranque do primeiro Campeonato do Mundo, no Uruguai, onde a França é um dos quatro representantes europeus, juntamente com Bélgica, Roménia e Jugoslávia. A viagem de três semanas para Montevideu, a bordo do paquete Conte Verde, é outra história dentro desta história, que aliás já foi contada aqui

Para o que nos interessa, a 13 de julho de 1930, é Villaplane quem cumprimenta o seu homólogo mexicano e o árbitro uruguaio Lombardi, antes do pontapé de saída do jogo inaugural dos Mundiais. E é ele quem, aos 19 minutos, corre para abraçar Lucien Laurent, depois de este marcar o primeiro dos 2208 golos em toda a história da competição.

A comitiva francesa a bordo do Conte Verde

Escreve-se história no futebol mundial e Villaplane está no centro dos acontecimentos, apesar da prematura eliminação da França e do seu adeus à seleção: a derrota por 1-0 com o Chile é o seu último jogo pelos «azuis». E é também o fim do primeiro ato numa história que, a partir daqui, é tudo menos banal.

Os primeiros desvios

O regresso a Paris apanha-o na crista da onda. Com dinheiro para gastar e uma personalidade forte, torna-se uma figura da noite e vai cultivando contactos nos bas-fonds. As corridas de cavalos são a sua outra paixão, e é a partir delas que começa a aprender os mecanismos da manipulação de resultados.

Em 1932, com a chegada do profissionalismo e a criação do primeiro campeonato unificado, Villaplane ruma ao Sul, ao dinheiro fresco do Antibes, que quer fazer da Côte Dazur o centro do futebol francês. Os resultados validam a aposta, e o Antibes chega à decisão do título, logo no primeiro ano.

Mas o escândalo rebenta ainda antes da final: jogadores do SC Five, de Lille, teriam sido aliciados a facilitar a derrota (5-0) que permite ao Antibes vencer a sua série, à frente do Cannes. O Antibes é desclassificado, o Cannes vai à final. Perde-a (4-3) para a outra equipa de Lille, o Olympique, que assim se torna o primeiro campeão profissional de França.

A investigação das autoridades centra-se em Villaplane, cujas ligações ao crime organizado começam a dar nas vistas. Teria sido ele, com a conivência de Laurent Henric e Pierre Cazal, ex-companheiros no Sète, a organizar a operação. Mas nada se prova, e só o treinador do Antibes, Valère de Besvelony, é castigado com irradiação. O jogador muda-se para o Nice, mas os seus anos de ouro já ficaram para trás. A carreira nos relvados está em declínio: Villaplane só volta a ser notícia em 1935, quando é condenado a seis meses de prisão por viciação de apostas em cavalos. Não voltará a jogar futebol profissional.

A Gestapo francesa

Nos quatro anos que antecedem a II Grande Guerra, o antigo médio acentua as ligações ao crime organizado. A chegada dos alemães a Paris, em junho de 1940, encontra-o novamente na prisão, pelos crime de extorsão e receptação. É nessa altura que se torna o homem de confiança de Pierre Bonny, um antigo chefe de polícia, expulso por corrupção, que usa os seus contactos no meio para formar a mais influente quadrilha do submundo na capital francesa. Quando Villaplane sai da prisão, os próximos passos da carreira estão definidos.


Os judeus procuram os documentos que lhes permitam a fuga, e os seus bens, ouro e dinheiro acabam facilmente nas mãos erradas. Tanto mais que Bonny se alia a outro escroque, Henri Lafont, cujos contactos com os nazis lhe dão cobertura política. Durante quatro anos as autoridades alemãs fecham os olhos às pilhagens do grupo, que rapidamente ganha a alcunha de «Gestapo Francesa». Em troca, Bonny usa os seus contactos para identificar e denunciar focos da Resistência, que muitas vezes são torturados e executados pelos próprios membros da quadrilha.



Villaplane não hesita em cumprir ordens, mesmo as mais cruéis. Em 1944 passa a integrar a Brigada Norte-Africana, braço armado dos alemães, no combate à Resistência. Ainda assim, astuto, apercebe-se de que os ventos de guerra estão a mudar. Mesmo com uniforme das SS, começa a fazer jogo duplo e facilita algumas fugas, sugerindo que a colaboração com os alemães não passou de fachada. Mas ainda em junho participa ativamente na denúncia e posterior massacre de 52 alegados elementos da Resistência, em Mussidan, perto de Bordéus, como represália pelo ataque a um comboio da Wehrmacht.

Torna-se impossível apagar um rasto de quatro anos de crimes violentos e de colaboração com o inimigo. Paris começa a ser libertada pelos Aliados a 19 de agosto e Villaplane, Bonny e Lafont são capturados até final desse mês. O processo demora três meses a concluir, o julgamento começa a 1 de dezembro e termina dez dias mais tarde. Villaplane, que apenas 14 anos antes tinha sido escolhido como símbolo das virtudes da França, é condenado à morte, tal como Bonny e Lafont. O seu nome torna-se sinónimo de traição e vergonha. A execução é marcada para o dia seguinte ao natal, no Fort de Montrouge, nos arredores de Paris.

E é aqui que fechamos o círculo, tal como prometido. São 9.50 da manhã desse 26 de dezembro de 1944. Bonny, Lafont e Villaplane são amarrados aos postes. Adivinha-se uma ordem, que o filme mudo não regista. E depois cai o pano.



Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares.