Uma beata de um cigarro numa bancada de madeira foi o rastilho para uma das maiores tragédias do futebol inglês. Em cerca de cinco minutos, aquele jogo entre Bradford e Lincoln, a contar para a terceira divisão do futebol inglês, tornou-se numa luta pela sobrevivência de várias centenas de pessoas, encurraladas no meio das chamas e sem saídas de emergência.

O incêndio de 11 de maio de 1985 provocou mais de 250 feridos, que tiveram mais sorte do que as 56 pessoas que perderam a vida.

A história foi recordada na quinta-feira, no segundo e último dia do congresso do Sporting «The Future of Football», por Chris Whalley, durante várias décadas responsável pelos departamentos de proteção e segurança nos estádios de futebol tutelados pela Federação inglesa (FA) e que acompanhou de perto as mudanças transversais a todo o futebol inglês entre as décadas de 80 e 90.

O futebol inglês tinha entrado numa espiral descendente que nem os sucessos contínuos além-fronteiras de Liverpool, Nottingham Forest e Aston Villa - que conquistaram sete Taças dos Campeões Europeus no espaço de oito anos - conseguiam mascarar. As condições de segurança dos estádios eram preocupantes e os episódios de violência sucediam-se.

Semanas depois do incêndio em Bradford, os problemas endémicos do futebol inglês chegaram à Bélgica: a 29 de maio de 1985, durante a final europeia entre Liverpool e Juventus, um ataque de hooligans dos reds a adeptos italianos acabou com 39 mortos por esmagamento após a queda de um muro.

O castigo aplicado pelos órgãos de disciplina da UEFA aos clubes de Terras de Sua Majestade foi duríssimo: cinco anos de afastamento das competições europeias. Em quase 40 anos, o número de espectadores nos jogos dos quatro principais escalões de Inglaterra foi caindo sem parar dos 40 milhões para perto de 15 (gráfico acima).

«Mesmo assim, os problemas continuaram», prosseguiu Chris Whalley, lembrando a tragédia de Hillsborough, que provocou 96 mortes em 1989. «Depois desta tragédia todas as pessoas reconheceram que as coisas tinham de mudar. Se antes disso tivesse dito aos clubes que tinham de gastar muito dinheiro para mudarem os estádios, ter-me-iam dito que não havia dinheiro. Mas depois tornou-se mais fácil convencer os clubes a gastar dinheiro para prepararem melhores os seus estádios. Introduzimos mudanças significativas: passou a haver uma abordagem conjunta entre o governo e as autoridades policiais e desportivas. Foi criada uma nova legislação e os clubes tiveram de melhorar muito as condições dos estádios e foi aprovada legislação relativamente à violência. Há regulamentos que proíbem pessoas de frequentarem estádios de futebol em Inglaterra ou no estrangeiro durante três anos.»

No pico dos castigos, o número de adeptos proibidos de frequentar estádios chegou a ultrapassar os 3 mil: hoje em dia é ligeiramente inferior a 2 mil. Em 30 anos, as alterações introduzidas duplicaram o número de espectadores presentes nos recintos e ajudaram a transformar a Premier League num dos maiores e mais rentáveis produtos televisivos à escala global.

A segurança nos estádios foi uma das problemáticas abordadas pelos oradores do quinto painel do «The Future of Football», intitulado «O pior no futebol – como abordá-lo», e onde se debateram outras questões como o match fixing, o surgimento de capital proveniente de origem desconhecida, transações de jogadores suspeitas e que implicações pode tudo isto ter para indústria do desporto.

«Quando falamos de futebol, falamos sobre capital, mobilidade internacional de fundos, falta de transparência e esforço para sobreviver neste mundo. Temos aqui imagens daquilo em que o futebol se tornou, com transferências de jogadores feitas às vezes por quantias exageradas», disse o sociólogo e jornalista italiano, Pippo Russo, apontando para uma fotografia de Neymar, transferido do Barcelona para o PSG pela verba recorde de 222 milhões de euros.

Pippo Russo utilizou o caso de vários negócios entre dois clubes italianos que têm levantado suspeitas nos últimos anos: Chievo e Cesena, com um histórico de transações de jogadores que, na opinião do jornalista, é de difícil compreensão.

«O Chievo é uma espécie de conto de fadas do futebol italiano: um clube pequeno que saiu de um pequeno bairro da cidade de Verona que esteve presente em 16 dos últimos 17 campeonatos da Serie A. A questão? O Chievo e o Cesena são como clubes gémeos: circulam muitos jogadores através de um mecanismo com jogadores menores, que durante os anos de formação têm um custo original de zero euros e depois são vendidos ao outro clube por uma grande quantia de dinheiro e produzem mais-valias nas contas anuais, que têm um efeito de ajuste.» Pippo Russo referia-se a Lorenzo Placidi, Pietro Borgona, Filippo Zambelli e Alberto Tosi, jogadores transacionados em 2016, ainda adolescentes, pelo Chievo para o clube da Serie B italiana por vários milhões de euros. O que se seguiu contribuiu para aumentar ainda mais as suspeitas. «O Pietro Borgona está agora na Serie D (quarta divisão) e abandonou a equipa porque não estava satisfeito: agora recebe 200 euros por mês para cobrir as despesas.»

«Em Itália e no futebol em geral existe uma bolha que é preciso resolver: se conseguirmos isso, teremos um futebol mais limpo», constatou Pippo Russo durante a intervenção.

Uma missão difícil de concretizar, até porque, como negócio que movimenta milhões de euros, o futebol é também alvo do interesse de organizações mafiosas, pelo que requer vigilância constante. «São redes globais bem financiadas e que trocam informações umas com as outras: aumentam a velocidade da troca de informação e escapam às autoridades. É muito importante percebermos a metodologia de como o crime organizado tenta infiltrar-se e manipular jogos», explicou Fred Lord, diretor do Internacional Centre for Sport Security (ICSS).

Segurança nos estádios, combate à corrupção, vigilância de comportamentos suspeitos e nunca deixar de questionar. Rob Harris, jornalista da Associated Press, dissertou sobre a entrada de investimento estrangeiro nos clubes, realidade massificada na última década em muitos clubes europeus, com especial peso para os ingleses, os italianos (Inter e Milan) e para o PSG, detido por um homem de negócios do Qatar que gere um fundo de investimento ligado ao governo daquele país asiático. «Pondo-nos no papel dos adeptos, será que queremos como investidor, alguém que injeta muito dinheiro mas que não se preocupa muito com o que se passa dentro do clube e que quer apenas ganhar dinheiro?

Rob Harris deu o exemplo das relações tensas existentes no Manchester United entre adeptos e a família Glazer (acionista maioritária do clube), da entrada de investidores dos Emirados Árabes Unidos no Manchester City e muito mais. «Abu Dhabi financia muitos clubes de futebol e gasta quantidades muito significativas em clubes; em Itália, o dinheiro do Milão vem da China e na Rússia temos o Governo envolvido no financiamento de clubes. Muitas vezes, os clubes tem investidores que não os têm no coração: não defendem os interesses dos clubes mas sim os seus próprios interesses. Será que este modelo é sustentável e legítimo?»

Para Rob Harris, há valores morais que também não devem ser ignorados. «Muitas vezes, os investimentos vêm de países que não respeitam os direitos humanos. Os adeptos ignoram muitas vezes estas questões e de onde vem o dinheiro. Há suspeitas de lavagem de dinheiro? O dinheiro está a ser canalizado para onde? (…) Temos de nos assegurarmos de que o jogo é limpo e que o futuro não é contaminado por redes criminosas que podem sujar o jogo.»

O risco de o público se desinteressar existe: pelo surgimento de «novos-ricos» na paisagem futebolística que aumentam as discrepâncias competitivas, pelas crescentes suspeitas mas também pelas elevadas quantias cobradas pelos bilhetes e até pelo relacionamento que, no entender de Rob Harris, é cada vez mais frio entre alguns clubes e os adeptos.

Fica, por isso, o aviso: «Se perdermos adeptos, para onde vai o futebol?»