Grande rombo na maré de optimismo que envolveu esta selecção no último ano. Apesar dos incessantes avisos deixados durante a semana por técnicos e jogadores sobre o valor desta nova Irlanda, capaz de emudecer o ArenA de Amesterdão durante 75 minutos, o sentimento dominante, antes do jogo era de que, mesmo com o respeito que Oliveira não se cansou de pedir, a selecção estaria condenada a provar em campo a sua superioridade, somando a segunda vitória e mantendo a liderança no grupo 2 de apuramento para o Mundial. 

A memória recente de um outro Portugal-Irlanda, há cinco anos, bem como a impressão, justificada, de que as principais figuras da equipa nacional estavam a aproximar-se de um momento de forma muito razoável contribuíam para esse estado de espírito, já para não falar do efeito-talismã do estádio da Luz, palco habitual das grandes vitórias e feudo inviolado nos últimos dez anos. 

Todos estes factores foram insuficientes para evitar um empate com sabor a frustração, quanto mais não seja pelas implicações imediatas do resultado ¿ perda da liderança no grupo, aumento da pressão em relação ao jogo de quarta-feira, com a Holanda e, em última análise, promoção da equipa irlandesa, que depois de escapar ilesa das viagens a Amesterdão e a Lisboa deixa de ser um outsider e se coloca, por direito próprio, em boa posição na corrida ao apuramento directo. 

Mas não se resume a isto a frustração. Mesmo reconhecendo que os irlandeses foram felizes na forma como chegaram à igualdade, numa fase em que já não conseguiam estender o seu jogo à outra metade do campo, mesmo admitindo que a noite inspiradíssima de Rui Costa e as pinceladas de talento de Figo mereciam outro resultado, mesmo aceitando que Portugal dominou quase todo o jogo, estes factores não chegam para que se possa falar de injustiça pura.  

Faltou sempre algo mais à Selecção, para transmitir a imagem de solidez e ameaça constante, tão vívida durante o último Europeu. Faltou, por exemplo, fluidez de jogo que permitisse traduzir em oportunidades a superioridade no tempo de posse de bola e na sua circulação. 

Tanta resposabilidade para Rui Costa! 

António Oliveira surpreendeu de início, apostando, com pleno sucesso, em Beto para lateral-direito. Por outro lado, ao manter o esquema táctico utilizado na Estónia, com Vidigal como único médio de cobertura e Sérgio Conceição titularizado à direita, o seleccionador deu um sinal claro de ambição e espírito ofensivo, colocando de início cinco jogadores claramente vocacionados para atacar. 

Não foi, portanto, por falta de atrevimento que Portugal não massacrou o adversário. Mas em futebol, nem sempre o que parece é. Ao utilizar apenas um médio defensivo com as características de Vidigal, bem diferentes das de Paulo Sousa, Oliveira obtinha garantias de agressividade e eficácia na recuperação de bola, mas perdia, por outro lado, em ligação com os homens da frente e em visão de jogo. Como consequência, Rui Costa estava obrigado a trabalho-extra, partindo de uma posição mais recuada para iniciar os lances de ataque, antes de soltar o seu talento em iniciativas mais próximas da área. 

O médio da Fiorentina não falhou nesse duplo papel, sendo mesmo, do primeiro ao último minuto, o mais consistente e lúcido jogador em campo. Mas, mesmo com todo o seu empenho, era inevitável que a fonte alimentadora do jogo da equipa nacional não pudesse cobrir o campo todo. Como consequência, Portugal surgiu um pouco mais preso de movimentos do que seria desejável, não conseguindo tirar pleno partido da disponibilidade flanqueadora de Sérgio Conceição e Figo. 

A exibição do jogador do Real Madrid é a melhor ilustração para esse aparente paradoxo, que levou a equipa portuguesa a perder peso atacante com a titularidade de mais um jogador ofensivo ¿ por contraste com a ameaça constante exibida, por exemplo, nos jogos do Europeu: Figo mostrou pormenores de classe suficientes para, com outra intensidade de jogo ofensivo, desequilibrar as operações em favor de Portugal. Mas, mesmo respondendo presente em quase todas as solicitações, ficou da sua exibição uma ideia de intermitência, que mais do que apagamento próprio revelou escassez de solicitações. 

McCarthy dá uma ajudinha 

Terá sido por acaso que as ocasiões de perigo alcançadas na primeira parte tiveram, quase sempre, origem nos pés de Rui Costa? Com excepção de um slalom de Figo, aos 36 minutos, que obrigou Kelly a grande defesa, nunca Portugal conseguiu criar condições para aproveitar a velocidade e o talento dos seus extremos, muito menos conseguir espaços para contra-atacar. 

Mesmo dando a justa parcela de mérito à Irlanda ¿ incomparavelmente mais hábil no trato da bola e na ocupação de espaços que a sua antecessora de há cinco anos ¿ pairou sempre a sensação de que faltava a Portugal outro ponto de apoio a meio-campo, sobrando-lhe esforço e mobilidade estéril na dupla avançada formada por Sá Pinto e João Pinto. 

Havia razões para recear a segunda parte, mais que não fosse pela certeza de que Rui Costa teria, fatalmente, de diminuir o ritmo, mais tarde ou mais cedo. Mas, curiosamente, Mick McCarthy deu logo no recomeço um aparente tiro no pé, tirando o poderoso Nial Quinn ¿ que na primeira parte, por duas ou três vezes, conquistara espaços preciosos para os seus companheiros, pondo em respeito a defesa portuguesa ¿ e assumindo a defesa do empate com a colocação de mais um médio. 

Como consequência, o jogo tornou-se, pela primeira vez, de sentido único. E mesmo não conseguindo muitas oportunidades ¿ os lances de perigo partiam, quase sempre, de remates de fora da área ¿ Portugal pôde descomprir atrás e carregar um pouco mais. Como por encanto, o golo surgiu pouco depois, em mais uma abertura luminosa de Rui Costa, que finalmente conseguiu descobrir Sérgio Conceição na direita, com um pouco de espaço. O talento do extremo do Parma fez o resto. A situação parecia definitivamente desbloqueada. 

O caso-Pauleta 

Nos próximos dias, não deixará de lançar-se novamente para a mesa o dilema-Pauleta. Logo do início da segunda parte, o público começou a gritar o seu nome, como é habitual em momentos delicados. Oliveira pareceu disposto a fazer-lhes a vontade, mas com a chegada do golo tudo voltou à estaca zero. É discutível que a entrada de um ponta-de-lança fixo tivesse modificado substancialmente as características do jogo, mesmo sendo flagrante que Sá Pinto estava em noite pouco inspirada: poucas foram as bolas jogáveis de que Portugal dispôs na área irlandesa, à medida do talento finalizador do açoriano. 

Mas pelo meio surgiu o golo ¿ bonito e feliz ¿ de Holand, e Portugal congelou. Oliveira retomou então as opções anunciadas, lançando Pauleta e Simão, mas não resolvendo o problema da circulaçãode jogo. Pelo contrário: desmoralizada e com o tempo a funcionar em desfavor, nunca mais a selecção voltou a estar tão perto da vitória como o estivera até aos 70 minutos. Com excepção de dois remates de Figo, a rasar os postes, os ataques lusos acabaram ali. 

No final, os exemplares adeptos irlandeses fizeram a festa, afortunada mas merecida. E Portugal voltava às cabinas com um sentimento de amargura provocado por um empate que, mais do que por qualquer outro motivo, bem pode ter sido provocado por excesso de ambição.