Quando nos chegam notícias atuais sobre incidentes racistas em estádios de futebol, raramente temos a tentação de questionar quem foi o primeiro, ou quando é que tudo isso começou. Em Inglaterra, porém, essa é uma pergunta com resposta, em forma de data e nome próprio: ao longo da sua vida, que não chegou aos 30 anos, Walter Tull foi o primeiro em muitas coisas. Nem todas foram boas.

Nascido em 1888, neto de uma escrava de Barbados, Walter ficou órfão de pai e mãe com nove anos de idade. Teve de crescer depressa no orfanato para onde foi transferido, Bonner Road, em Bethnal Green. Aí viveu nos dez anos seguintes, juntamente com o irmão mais novo, Edward, e outras 300 crianças e adolescentes.

Na linha da tradição escolar britânica, o desporto era uma das formas prioritária de controlo de jovens potencialmente problemáticos. Walter tirou bom partido das duas horas diárias dedicadas à prática de futebol ou críquete, conquistando o respeito e a admiração dos colegas e contornando as reservas que o tom de pele levantou nos primeiros tempos.

Aos 14 anos, Tull deixou o orfanato e tornou-se aprendiz de tipógrafo, mas continuou a jogar futebol em clubes de bairro. Rápido e talentoso, criou fama de bom extremo no circuito amador dos arredores de Londres. E, sem surpresa, ao fim de quatro anos acabou por ser detetado por um olheiro de um dos melhores clubes amadores de Londres, o Clapton FC.

No início do século XX o futebol profissional era uma realidade em crescimento em Inglaterra, mas a tradição amadora continuava viva e de boa saúde. Na época de estreia de Tull, com boa ajuda do recém-chegado, o Clapton FC conquistou os três troféus mais importantes para a categoria de amadores. O London Star elogiou-lhe «os pés hábeis» e chamou-lhe «a revelação da temporada». E elogios como esse fizeram despertar o interesse dos profissionais.

Ao contrário da maioria dos colegas de equipas – jovens de famílias abastadas – Tull não tinha desafogo para praticar o football somente por gosto. Por isso não pensou duas vezes quando, no verão de 1909, recebeu uma proposta para cumprir testes num clube londrino, relativamente modesto para a época, e pela primeira vez promovido ao escalão principal. O clube equipava de branco e chamava-se Tottenham Hotspur.

Tull com a camisola do Tottenham

Os primeiros treinos foram convincentes. Tanto, que os responsáveis o convidaram a integrar a tradicional digressão de fim de época pela América do Sul: foi assim que, num tempo em que a segregação racial era regra, os relvados do Uruguai e da Argentina tiveram pela primeira vez em ação um jogador mestiço num jogo de brancos. No regresso a Inglaterra, depois de um punhado de jogos promissores, Tull tinha um contrato profissional à espera: 10 libras como prémio de assinatura, mais quatro libras por semana. Muito mais do que alguma vez poderia ganhar na tipografia. A temporada 1909-10 podia começar, cheia de promessas.

Os hooligans de Bristol

Em rigor, Tull não era o primeiro negro a jogar no campeonato inglês: essa honra pertence a Arthur Whartson, guarda-redes que representou o Preston North End e o Sheffield United, no final do século XIX. Mas era o primeiro jogador de campo a fazê-lo, numa época em que os jogos começavam a ser seguidos por dezenas de milhares de espectadores.

Tull em ação pelos Spurs

Em setembro de 1909, Walter Tull tornou-se o primeiro mestiço a marcar um golo na Liga inglesa, diante do Bradford. Por essa altura, a sua reputação crescia a olhos vistos, reforçada pelos elogios da imprensa. Mas foi sol de pouca dura: a 9 de outubro de 1909, em casa do Bristol City, Tull tornou-se o alvo principal dos adeptos locais, que desde a entrada em campo lhe dirigiram insultos racistas. A coisas assumiu tais proporções que o cronista do Daily Chronicle se sentiu forçado a escrever:

Uma parte do público fez um ataque cobarde a Tull, usando linguagem mais baixa do que Billingsgate. Mas deixem-me dizer aos hooligans de Bristol (uns poucos, numa assistência de 20 mil) que Tull é tão limpo no seu jogo e modo de agir que pode bem ser um modelo para todos os brancos que praticam este desporto.»

Apesar desta defesa, o incidente viria a ter réplicas nos jogos seguintes, deixando marcas na confiança do jogador e dos dirigentes do Tottenham, receosos de que Tull se transformasse num ponto vulnerável da equipa, que lutava para não descer. Ao fim de sete jogos, o estreante foi despromovido às reservas até final da época. E no ano seguinte, depois de três jogos na equipa principal, com mais um golo, ao Manchester City, o cenário repetiu-se. Na primavera de 1911, Tull já não era a sensação exótica dos primeiros tempos, mas um proscrito sem espaço para jogar na primeira equipa. A proposta para jogar no Northampton, das divisões secundárias, foi uma bênção para todos.

Ídolo no Northampton

No seu novo clube, Tull foi treinado por um jovem Herbert Chapman, que viria a tornar-se um dos técnicos mais marcantes na história do futebol, com a invenção do WM. Longe da pressão, valorizado por um técnico apreciador do seu talento, o extremo habilidoso floresceu e tornou-se a estrela da equipa. Em 1914, com 26 anos, estava de novo no auge das capacidades. E aprestava-se para assinar pelo Glasgow Rangers quando, em julho, a Guerra Mundial rebentou. O contrato ficou em suspenso, com a promessa de ser reativado assim que a Guerra acabasse e o futebol voltasse às rotinas.

Uma pausa na Guerra

Sendo o primeiro em tanta coisa na vida, Tull foi também o primeiro jogador do Northampton a alistar-se no famoso «Fottballers Battalion», o 17º de Infantaria, onde se reuniam os jogadores profissionais. E, depois do seu comportamento heroico na batalha do Somme, em 1916, tornou-se, no ano seguinte, o primeiro oficial mestiço na história do exército britânico. E foi nessa condição que, a 25 de março de 1918, a poucos dias de cumprir 30 anos, morreu em combate, vítima de fogo alemão, na região de Pas-de-Calais. O seu corpo nunca foi recuperado. Era a sua sexta batalha em três anos e meio de guerra. 

Em 1999, o Northampton ergueu-lhe um monumento, no exterior do estádio Sixfields. Nele, pode ler-se:

Pelas suas ações, Walter DJ Tull ridicularizou as barreiras da ignorância que tentaram negar às pessoas com pela escura os mesmos direitos dos seus contemporâneos».

Os gritos de macaco que, volta e meia, ainda se vão ouvindo a partir das bancadas, neste país ou noutro, ajudam a manter esta história com 100 anos bem mais atual do que pareceria possível.

O monumento a Tull

Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares.