O «milagre alemão» operado neste século XXI que culminou em 2014 com a vitória da seleção germânica no Campeonato do Mundo de futebol é uma realidade nos dias de hoje olhada de fora com o reconhecimento não só de um objectivo concretizado, mas como desejável. Os alemães fizeram a sua revolução interna e, no presente, contam-na com o orgulho do sonho realizado. Os casos dos outros serão outros casos, cada um com o seu...

As mudanças, evolução, revolução que o futebol na Alemanha se impôs a si próprio na formação de jogadores é já a referência exibida pelos seus atores e citada pelos seus espectadores. São 14 anos que mostram a passagem do 8 ao 80, desde o tal Euro 2000 terminado com a pior participação de sempre numa competição, até ao título mundial.

«Lahm a erguer a taça foi o momento esperado», resumiu de início Ulf Schott, nesta terça-feira, no Centro de Congressos do Estoril, onde o director da Federação Alemã de Futebol (DFB) participou no primeiro dia do «Football Talks» da FPF. A frase serviu de mote para contar o que aconteceu na sequência de uma «conjuntura» resumida «pelos 3-0 com Portugal» em 2000.

Quando duas equipas alemãs se defrontaram pela primeira vez numa final da Liga dos Campeões, em 2013, o Nuno Madureira analisou o «milagre» que nos dias de hoje já está revelado. Ulf Schott contou na primeira pessoa e com o powerpoint a revolução em que participou. Aos 44 anos, o antigo jogador de futebol (em clubes modestos) director da DFB desde 2012 actualizou os números até ao presente.

E são os números o que mais impressiona neste trabalho de formação para que ela seja o que é. Num país de 82 milhões de habitantes, a Alemanha tem 6,9 milhões de futebolistas, 25.500 clubes, 165.000 equipas, distribuídos por 21 associações. O cenário é apresentado por regra entre o antes e depois da revolução. «Até 2000 não houve promoção homogénea dos talentos»: em 2000/01 havia 31 jogadores sub-18 na Bundesliga; até 2012/13, o número mais do que duplicou, para 65.

As academias que não acabam...

Na selecção alemã do Euro 2000, apenas um dos jogadores tinha menos de 23 anos. Na selecção campeã do mundo, seis tinham menos de 23 anos e quatro tinham menos de 25. Antes, «quando se falava de dinheiro», a questão do futebol de formação «perdia importância». «Depois do Euro 2000, o alarme soou porque a seleção alemã estava envelhecida», «houve muita pressão pública» e «a federação e as associações perceberam que tinham de sentar-se a conversar».

E conversaram . E abriram os cordões à bolsa. Obrigaram os clubes da Bundesliga a terem academias, fomentaram as escolas de elite, procederam à certificação das academias por qualidade. «Todos os clubes foram auditados.» Atualmente, a Alemanha tem 366 bases regionais servindo cada uma 50 a 70 clubes. Os jogadores observados estão na ordem dos 600 mil. Durante a semana há um treino especial para scouting de talentos. Estes eventuais talentos são orientados por 1.300 treinadores voluntários em part-time (que não recebem pagamento e têm outro trabalho) sob as indicações de 29 coordenadores.

A detecção de talentos na Alemanha vai-se aprimorando numa realidade que já é composta por 54 academias jovens e 35 centros de elite; degrau intermédio entre os programas de base e as equipas nacionais. «Não tínhamos um feed-back para os clubes que tinham maus resultados nem do que podiam melhorar». Agora, já se consegue detetar «os pontos mais fortes e mais fracos dos jogadores» promovendo uma «formação homogénea».

«Os jogadores com mais talento vão para os centros de alto rendimento dos grandes clubes» – que já são 22 os de categoria máxima (três estrelas) . E, esclarece Ulf Schott, os jogadores que «não conseguem com 17 ou 18 anos jogar na I Liga jogam na segunda equipa», a equipa sub-23 da III Divisão: «Aconteceu com Schweinsteiger ou Müller.»

...e o dinheiro que também não

A aposta da Alemanha na formação foi de tal ordem que, hoje, o país tem 14 cursos anuais para treinador de elite e são 4.378 treinadores com esta licença, que é obrigatória para trabalhar nos centros de alto rendimento. É um investimento de muitos zeros, sempre a aumentar todos os anos. Em 2012/13, o investimento na formação foi de 130 milhões de euros. Na época seguinte, foi de 135 milhões. Desde 2000/01, o total de dinheiro investido foi de 1.200.000 milhões de euros.

Este dinheiro é repartido pela federação, associações e clubes. Só no ano passado, a federação germânica despendeu 50 milhões de euros do orçamento para o futebol de formação. E não há dinheiros públicos. «No futebol não querem dinheiro do Estado», pois, diz-nos Schott, «na Alemanha não era fácil explicar às pessoas que o seu dinheiro ia para o futebol». E se nem todos tiverem o dinheiro da Alemanha? A resposta é diplomática: «É um erro copiar um sistema de um país para outro.»

Ulf Schott conta que os alemães observaram o sucesso de franceses e holandeses no final do século e decidiram «implementar um sistema» que teve em conta «fraquezas e forças» e que passou pela «profissionalização das áreas específicas, desde o treino à medicina». Mas ainda nem todo o caminho está desbravado, pois, como lembra o director da DFB, a Alemanha é um país federal – «a França, por exemplo, não é» – e há decisões políticas que estão ainda por tomar.

Aquelas são uma das explicações apontadas por Schott para que não haja ainda uma academia nacional da DFB. «Demora muito a fazer. É preciso que todos falem, todo os intervenientes das regiões, para passar da teoria à prática.» Nesta compartimentação geográfica há um emblema que se destaca de todos os outros clubes alemães. O Bayern Munique domina o futebol interno – oito campeonatos nos últimos 14 (três para o B. Dortmund e um para Estugarda, Werder Bremen e Wolfsburgo).

Ulf Schott não concorda que este domínio dentro de fronteiras do Bayern seja entrave a um domínio alemão nas competições europeias de clubes – como são os casos de Espanha e Inglaterra – contrariando o que as seleções nacionais germânicas conseguiram com a sua revolução na formação: «Temos de ter orgulho no Bayern Munique. E a nossa liga pode ser interessante para além da luta para ser campeão…»