«Se a bola é feita de couro, se o couro vem da vaca e se a vaca come relva, então a bola tem de rolar na relva…», dizia Gentil Cardoso, o «Moço Preto», uma das figuras mais folclóricas do futebol brasileiro, que chegou até a atravessar o Atlântico para orientar o Sporting – em 1963/64, época em que os leões venceram a Taça das Taças.

Esta máxima bem poderia dar o mote ao «drible da vaca», uma das habilidades mais criativas do futebol brasileiro, que remonta aos seus primórdios.

A invenção terá surgido nos campos improvisados em locais de pastagem, quando o futebolista tinha de driblar não só o adversário mas também o gado bovino que muitas vezes invadia o terreno de jogo para comer a relva. Num movimento simples e de belo efeito, o futebolista encara o adversário passando-lhe a bola por um lado e contornando-o pelo outro para recuperá-la.

Houve executantes famosos, como Garrincha ou Rivelino, porém, nenhum «drible da vaca» terá ficado mais famoso do que o de Pelé ao Uruguai no Mundial de 1970… Com o requinte de nem sequer tocar na bola, fez uma perfeita simulação à saída de Ladislao Mazurkiewicz, contornando-o. Meia lua divinal culminada com um remate… ao lado.

O «Rei» rematou já em desequilíbrio e a bola saiu a centímetros do poste direito da baliza do Uruguai. Um falhanço, sim. Mas um dos mais belos golos falhados de sempre.

O golo falhado por Pelé:

Se Pelé fez uma das mais artísticas simulações já vistas e acabou por falhar um golo histórico por centímetros; Romário, fera da área, fez o contrário: abortou a finta a meio caminho para garantir que a bola ia para o fundo das redes.

Como poderiam ambos estar de acordo?

Para sublinhar as diferenças, o adversário voltou a ser o Uruguai. 23 anos passaram e desta vez, a seleção «charrua» não era adversária nas meias-finais no México’70, mas sim nas eliminatórias do Mundial de 1994, nos Estados Unidos.

A qualificação foi um sufoco e só seria garantida naquela noite de 20 de setembro de 1993, no Estádio do Maracanã. Carlos Alberto Parreira teve de dar o braço a torcer, aceder aos apelos do público e convocar para a jornada decisiva Romário de Souza Faria – acabado de trocar o PSV Eindhoven pelo Barcelona.

Até aos 72 minutos de jogo, o nulo manteve-se, colocando em risco o apuramento do Brasil para o Mundial. Foi aí que apareceu Romário, para começar a sua missão de salvamento de Parreira e do escrete: salto, cabeceamento, 1-0! Mas seria com o bis, aos 81’, com um golo de antologia, que o «Baixinho» sentenciaria o resultado (2-0) e o apuramento.

Com Ruben Sosa e Daniel Fonseca lá na frente apoiados pelo mago Francescoli, os uruguaios balancearam-se para o ataque em busca do empate nos minutos finais da partida. E é aí que começa o 2-0 para o Brasil: Mauro Silva, numa ação decisiva, ganha a bola no meio-campo defensivo, galga metros e apanha a defesa uruguaia em desequilíbrio para fazer um passe açucarado. A assistência isola Romário, que segue para a baliza e encara o guarda-redes Robert «El Flaco» Siboldi usando uma combinação de habilidade e velocidade, numa perfeita síntese da ginga do futebol brasileiro.

Onze do Brasil frente ao Uruguai:

Romário faz do Maracanã a sua pelada e vai para o «drible da vaca», Siboldi percebe a intenção e obriga o goleador a um impressionante golpe de rins, prejudicando a finta para garantir o golo. Malandro, num ápice o «camisa 11» muda a trajetória e, surpreendido, Siboldi tenta em desespero atirar-se e acertar com uma sapatada no «matador», que se encaminha para a baliza pronto a dar a estocada final.

Na TV Globo, que transmite o jogo, Galvão Bueno relata em êxtase o golo que carimba o apuramento para o Mundial de 1994, onde Brasil viria a conseguir o tetra, passando a bola ao comentador… Pelé («calado é um poeta», diria sobre ele mais tarde Romário), que exclama: «O telespetador deve ter visto a inteligência do Romário. Ele ia dar o chamado ‘drible da vaca’. Quando ele percebeu que o goleiro ia no corpo dele, ele deu um drible de corpo no goleiro e veio pelo mesmo lado da bola. Matou o goleiro! Que beleza de jogada!»

«Falou quem sabe. Falou Pelé...»