Artigo originalmente publicado no Maisfutebol a 25 de março de 2015. Recuperado no dia da morte de Johan Cruijff, 24 de março de 2016

À 14ª Anatomia de um Jogo o 14 de Johan Cruijff. 7 de março de 1973, Amesterdão. O Ajax recebe o Bayern no momento mais alto da sua história, a caminho da terceira Taça dos Campeões Europeus consecutiva, a última da série. É a primeira mão dos quartos de final, com mais de 52 mil nas bancadas do Olímpico.

Apesar de o futebol continental estar a ser dominado claramente pelos holandeses, com o triunfo do Feyenoord em 1970 e as seguintes conquistas do Ajax, a seleção laranja continua sem alcançar grande sucesso. Em 1972, tinha ficado de fora do Europeu, ao cair frente a Jugoslávia e Alemanha de Leste, com o título a ser conquistado depois pelos outros alemães, os do ocidente. Sepp Maier, Beckenbauer, Breitner e Müller são as figuras da Mannschaft e deste Bayern, e os maiores obstáculos ao totaalvoetbal em Amesterdão.

Não é Michels, o inventor do futebol total, que está no banco dos de Godenzonen, os filhos dos deuses. O romeno Stefan Kovacs é agora o líder do Ajax desde 1971, mantendo com sucesso a filosofia do antecessor, entretanto emigrado para o Barcelona. O treinador dos germânicos é Udo Lattek. O antigo futebolista chegou em 1970, com o apoio de Beckenbauer, depois de ter trabalhado nas camadas jovens da federação e de ter sido adjunto de Helmut Schön na seleção principal. Ocupa o lugar deixado vago pelo croata Branko Zebec.

O campeão germânico começou a sua campanha em grande estilo, deixando pelo caminho Galatasaray e Omonia Nicosia, mas agora o grau de dificuldade é completamente diferente. Este é o melhor Ajax que pode haver, com Cruijff, Krol, Neeskens, Rep e Haan cada vez mais fluentes e letais no seu jogo.



Bayern a defender em Amesterdão

«Uns meses antes tínhamos vencido por 5-0 num particular em Munique, e não foi algo que exatamente tenham gostado. Aos 5-0, decidimos parar, era suficiente», lembrou Gerry Muhren.

O embate entusiasma todo o continente, mas os visitantes não vêm para deixar jogar o rival. Uma entrada dura de Roth sobre Cruijff nos primeiros minutos deixa o primeiro sinal do que aí vem. Um muro cerrado à frente do gato Sepp Maier, um exército disposto a lutar por cada bola. Mesmo assim, a primeira parte termina com o Ajax a reclamar algum azar depois do remate de Krol ao poste.

«Esse jogo vai permanecer como um dos melhores de sempre do Ajax. Estávamos no topo da nossa glória e ultrapassámos os nossos limites com o apoio de toda uma nação, de toda a comunidade do futebol europeu. O nosso estilo era admirado por todos. E, apesar de a equipa do Bayern ter garra e talento, sabíamos que podíamos lidar com eles sem qualquer problema. Toda a gente queria que passássemos. É por isso que aquela vitória era tão importante», reforçou Cruijff anos depois.

O erro de Maier

No regresso dos balneários, Hoffmann está perto de inaugurar o marcador para os germânicos, mas a equipa da casa irá finalmente festejar pouco depois, aos 53 minutos. Heinz Schilcher que entrara no onze devido à lesão de Hulshoff remata rasteiro, Maier tenta agarrar a bola, mas deixa-a fugir para a frente. Haan aproveita o erro do enorme guarda-redes e emenda para a baliza.

Mais motivados, os locais continuam a carga sobre a baliza do Bayern, que não consegue colocar qualquer dissabor à defesa contrária. Muhren, com um vólei fantástico que as câmaras de televisão mal apanham, aumenta para 2-0 aos 66 minutos. Três depois, Cruijff marca um pontapé de canto e Haan salta sozinho para mais um golo, fazendo a bola passar por cima de Maier. E, nos descontos, o 14 deixa mais uma pincelada da sua arte, ao saltar entre dois defesas para cabecear para mais um golaço, correspondendo ao cruzamento largo de Keizer.
 
«Nunca mais perdi um jogo daquela forma. Foi a pior derrota da minha carreira. Tive de marcar Johan Cruijff, por isso será que imaginam como estava no final do jogo?» Franz Roth nunca mais esqueceria aquele desaire.



Cruijff recusa-se a viajar até Munique

A eliminatória estava decidida, mas a controvérsia ainda não tinha estalado. Cruijff iria recusar-se a fazer a viagem até Munique, queixando-se de uma lesão no joelho. O médico declarou-o apto para jogar, mas o 14 consultou um especialista, que lhe aconselhou descanso para curar de vez o problema. O clube manter-se-ia firme na decisão de ter a sua estrela na segunda mão. «A viagem não cumpre os melhores interesses meus e do clube.» E não foi.

O Ajax perderia em Munique (2-1), depois de marcar primeiro e acabar de vez com as aspirações bávaras na eliminatória. Cruijff iria continuar com problemas e, nas meias-finais com o Real Madrid, seria novamente titular, embora aos olhos de muita gente ainda não estivesse bem. Os holandeses ganhariam por 2-1, mas os merengues tinham sido bem mais perigosos que os alemães na ronda anterior e queixavam-se ainda de um golo alegadamente mal anulado, na primeira parte, a Aguilar. Em Madrid, Santillana e Keizer seriam baixas, uma para cada lado. O Ajax fez outro jogo enorme, apesar de só ter conseguido um golo, com Krol a cruzar para Muhren marcar.

O tri frente à poderosa Juventus

Em Belgrado, o adversário seria a Juventus, reforçada com os milhões da família Agnelli. O clube de Turim batera o recorde de transferências com a contratação de Pietro Anastasi, que passou a formar dupla no ataque com Altafini. Mas o Ajax era mesmo imbatível. Nos minutos iniciais, pouco depois de Cruijff ter acertado no poste, Johnny Rep  o único estreante dos holandeses em finais da Taça dos Campeões – cabeceou para a vitória, após cruzamento de Blankenburg. Marchetti tinha sido batido pelo salto do adversário, Dino Zoff nada poderia fazer na baliza. O 1-0 chegou e bastou, com os italianos longe de ameaçar no contra-ataque, e o Ajax perfeitamente confortável com a bola.

O emblema de Amesterdão tornou-se o primeiro clube depois do Real Madrid a ganhar três títulos europeus consecutivos. O seu domínio do futebol continental era inatacável, e provavelmente apenas não continuou porque o núcleo duro dessa equipa  Cruijff incluído  deixou a equipa. O 14 tinha ido espalhar magia para Camp Nou.

O Bayern iria preencher o vazio, com as três Taças seguintes. Muitos jogadores garantiram ao longo da carreira que a humilhação do Olímpico deu-lhes traquejo para as épocas e sucessos que se sucederam.

AJAX –  Stuy; Suurbier, Blankenburg, Schilcher e Krol; Neeskens, Haan e Mühren; Rep, Cruijff e Keizer

BAYERN – Maier; Beckenbauer; Hansen, Schwarzenbeck e Breitner; Roth, Hoeness, Zobel e Dumburger; Hoffmann e Müller

O jogo completo:



Outras anatomias de um jogo:
1953: Inglaterra-Hungria, o jogo que mudou o jogo (e um país)
1970: Itália-Alemanha, o jogo do século
1974: RFA-RDA, o dia em que a Guerra Fria chegou ao Grande Círculo
1982: França-Alemanha, o jogão que o crime de Schumacher abafou
1986: Argentina-Alemanha, a vitória de uma nova religião
1994: Milan-Barcelona, o fim do sonho do Dream Team
1994: Leverkusen-Benfica, empate épico sentido como grande vitória
1999: Bayern-Manchester United, o melhor comeback de sempre
2004: Holanda-Rep. Checa, o futebol de ataque é isto mesmo
2004: Sporting-FC Porto, o clássico da camisola rasgada
2005: Milan-Liverpool, o fim do paradigma italiano
2005: Argentina-Espanha, a primeira página da lenda de Messi
2009: Liverpool-Real Madrid, pesadelo blanco aos pés da besta negra

ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus ( @luismateus no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na MFTotal.