Kaiser. A palavra remete para o universo militar e sugere um poder absoluto exercido com mão de ferro. Nesse sentido, poucas alcunhas foram tão pouco ajustadas: Franz Beckenbauer preferia a elegância à força, a inteligência à agressividade. É verdade que a sua liderança em campo entrava pelos olhos do espectador mais distraído, o que servia para alimentar metáforas imperiais. Mas para convencer os outros bastava-lhe aplicar o dom inato de descodificar o jogo, agindo sempre em antecipação, como o xadrezista que planeia movimentos a dez lances de distância.

Revelou-se ao mundo com 20 anos, no Mundial de 1966, ainda como médio, veloz e dinâmico. Marcou quatro golos que ajudaram a Alemanha a chegar à final de Wembley, perdida para a Inglaterra com muita polémica. Quatro anos mais tarde, no México, já era a figura dominante de uma selecção rejuvenescida e goleadora. Ainda como médio, foi determinante na desforra sobre os ingleses nos quartos-de-final.

No papel, cabia-lhe marcar Bobby Charlton, o animador dos ataques da campeã mundial. Mas a sua dinâmica, aliada a uma inteligência de predestinado, que lhe permitia aparecer no sítio certo antes dos outros, inverteu os papéis: foi Charlton quem se desgastou na vigilância ao seu marcador durante 70 minutos. E quando deixou o campo, Beckenbauer explodiu. Marcou o primeiro, empurrou a equipa para o segundo e, depois, para a vitória no prolongamento. Três dias mais tarde, uma derrota dramática com a Itália, no prolongamento, acabou de firmar o seu estatuto: grande entre grandes, até a perder.

Mas o grande contributo para a história do futebol ainda estava para chegar. Entre 1970 e 1974, com menos velocidade e mais lucidez e visão, recuou, colocando-se nas costas da defesa. Sem funções de marcação, adiantava-se quando a equipa ganhava a bola. A capacidade de antecipar os lances e a técnica com que transformava uma recuperação no primeiro passo de um ataque tornavam-no caso único. E permitiam-lhe, primeiro no Bayern, depois na selecção, transformar-se no dois-em-um perfeito, o sonho de qualquer treinador: um defesa quase inultrapassável, que raramente cometia uma falta, e simultaneamente o primeiro avançado de uma equipa que, por força das suas incursões no meio-campo, ganhava sistemática superioridade numérica.

Não era uma ideia nova: esse era o fundamento do catenaccio, idealizado nos anos 60 por Helenio Herrera, no futebol italiano. Mas os líberos desse tempo não tinham a souplesse e a inteligência de Beckenbauer, limitando-se a destruir. Foi o capitão da Alemanha a dar nobreza à função e a demonstrar que, uma vez mais, as revoluções tácticas no futebol criavam novas soluções ofensivas a partir de trás.

No Europeu de 1972 deu-se o ensaio-geral: com Beckenbauer na defesa, a Alemanha sagrou-se indiscutível campeã e tornou-se lógica favorita à vitória no Mundial seguinte, que acolhia nos seus estádios. Um problema, apenas: a liderança em campo no Euro-72 foi dividida com outro craque com vocação para maestro, o número 10 Günter Netzer. Aí sim, Beckenbauer foi Kaiser: deixou claro que só havia espaço para um patrão e Netzer, apesar do seu imenso talento, foi relegado para o banco.

Quando a Alemanha entrou em campo, a 14 de Junho de 1974, para iniciar a conquista do seu segundo título, já ninguém tinha dúvidas: o chefe era aquele senhor com a braçadeira de capitão e o número 5 nas costas, que jogava com uma elegância de galã de cinema. Um Kaiser, sim. Mas com luva de veludo a cobrir-lhe a mão de ferro. Pela primeira vez na História, os miúdos de rua tinham um defesa para elevar à condição de ídolo.

Texto retirado do Livro «O Essencial dos Mundiais Para Ler em 90 Minutos», publicado pelo Maisfutebol em 2014