CAMINHOS DE PORTUGAL é uma rubrica do jornal Maisfutebol que visita passado e presente de determinado clube dos escalões não profissionais. Tantas vezes na sombra, este futebol em estado puro merecerá cada vez mais a nossa atenção. Percorra connosco estes CAMINHOS DE PORTUGAL.

Algarve Clube de Futebol: 2ª divisão da AF Algarve

Por estes dias, o Algarve anda nas bocas do futebol português. O Portimonense já garantiu a subida e pode acabar a temporada com o título da segunda divisão nas mãos. Em sentido inverso, o Olhanense somou a segunda descida em três anos. Já o Farense e o Louletano continuam pelos campeonatos não profissionais à procura de um lugar ao sol.

Esperem, o rol de destaques algarvios em 2016/17 não fica por aqui. No futebol distrital há um emblema a contrariar qualquer tipo de fatalismo. Chama-se Algarve Clube de Futebol (ACF) e apareceu em abril do ano passado. Na última semana garantiu a subida, agora está a um ponto de conquistar a segunda distrital da Associação de Futebol do Algarve (AF Algarve).

Os feitos do emblema algarvio não ficam por aqui. Até à data tem 97 remates certeiros em 28 partidas, dados que perfazem uma média de 3,5 golos por encontro. Eis a historia do melhor ataque do futebol sénior português em 2016/17.

«A maior dificuldade foi ganhar a confiança das pessoas»

No século XXI, a região meridional portuguesa já hospedou clubes com nome de emblema inglês. O Algarve United foi o projeto mais mediático, mas fracassou. O Carvoeiro United ainda está para as curvas. Só que a iniciativa mais fresca do futebol algarvio quer primar pela diferença. Não há lugar a qualquer associação britânica. Nem outras semelhanças imaginárias. A não ser o primeiro nome próprio, pois claro.

«A ideia foi minha. Tive uma visão e decidi avançar. Foi assim, simples», conta Marco Guimarães. Em conversa com o Maisfutebol, o presidente do ACF enumera as razões que o levaram a preferir a região sul de Portugal. «É atraente e tem uma costa fantástica. Devido às suas condições naturais e climatéricas, seria mais fácil a adaptação dos elementos que procurávamos para vir trabalhar neste projeto», sustenta.
Ao adepto comum, a nomenclatura escolhida pode soar à experimentação mais óbvia possível. Mas foi premeditada e até alvo de estudo. «Vindo lá de fora fico com a impressão que a maioria dos clubes portugueses têm nomes pouco imponentes, excetuando Benfica, FC Porto, Sporting e outros que têm força e são fáceis de pronunciar. O Algarve é uma região multicultural, muito conhecida e tem um nome atraente. Nós procurámos explorar isso», refere Marco, descrevendo o desenho de uma laranjeira que o emblema carrega, em homenagem à região portuguesa que mais citrinos produz.

Ultrapassadas as questões conceptuais, vieram as preocupações logísticas. O dirigente admite que «as maiores dificuldades foram ganhar a confiança das pessoas e achar um local onde nos pudéssemos sediar». O Algarve CF começou por fazer as primeiras prospeções em Monte Gordo, a queimar a fronteira espanhola. Acabaria por fixar poiso mais para oeste, em Loulé. O nome do clube, que é o da região, permite essa flexibilidade.

Quanto às despesas, resumem-se ao sustento dos atletas. «Já que não recebem vencimento, procuramos proporcionar todas as condições necessárias para que se sintam confortáveis no dia-a-dia», assume Marco Guimarães.

Potenciar jovens? «Assumo esse risco controlado»

Entre o desconhecimento e a simplicidade, a prospeção de jogadores foi efetuada sem quaisquer barreiras. «Começámos do zero, abrimos instalações para treinos de captação e contactámos jogadores que nem conhecíamos – uns de forma direta, outros através de conhecidos. Tudo jogadores sem clube, mas com qualidade e potencial que acreditava em poder capitalizar e fazer crescer. Sempre com a ideia de incluir e não excluir. Não me recordo de ter bloqueado as portas a nenhum atleta», constata ao Maisfutebol o treinador do ACF, Eduardo Maciel.

Aliás, Eduardo diz mesmo que o jogador algarvio «só tinha a vantagem geográfica». De resto, o que mais importava na avaliação do perfil do jogador era a consistência. «Acredito na qualidade de trabalho, na sua continuidade. Se o atleta for inteligente para entender as nuances táticas, for honesto, gostar de trabalhar e tiver prazer no treino, então é possível criar, na minha forma de ver e perceber a vida e o futebol».

Verdade é que o Algarve CF sempre tencionou explorar o atleta nacional. Mas a ausência de qualquer arcaboiço em Portugal virou os horizontes de uma assentada. «Como somos um clube novo existe algum receio por parte das gentes da região. Nesse sentido, foi mais fácil atrair atletas estrangeiros à procura de uma oportunidade», assume o líder máximo da instituição, acreditando que a confiança já tenha crescido. «Depois do que fizemos, vai ser muito mais fácil atrair o jogador português para potenciá-lo», afiança.

O plantel é tingido por juventude e amadorismo. Treina quatro vezes por semana. Três atletas dedicam-se em exclusivo ao futebol, por ainda não terem conseguido arranjar emprego fixo. Outros seis sentiram pela primeira vez o cheiro do balneário. «E corresponderam! Acredito e gosto de apostar e potenciar jovens atletas. Assumo esse risco controlado», confessa o treinador de 42 anos.

O discurso anda em sintonia com o presidente, que rejeita investir em nomes sonantes. «Está completamente fora da nossa forma de estar e perceber o presente e o futuro. A nossa aposta é nos jovens jogadores: potenciá-los, trabalhá-los e capitalizá-los», aponta.

De meros desconhecidos a «alvo a abater»

A segunda divisão da AF Algarve esteve parada três anos. Regressou na época passada para fundar um campeonato com nove clubes. Entretanto, o quadro competitivo foi reformulado, com a duplicação do número de equipas. Entraram quatro clubes (Padernense, Guia, Odiáxere e Monchiquense) que haviam descido da primeira distrital.

Foram criados novos emblemas: Albufeira Futsal, Mentes do Desporto, Algarve CF e Sistema FC, que acabou por desistir. E ressurgiram as formações secundárias de Olhanense, Quarteirense e Esperança de Lagos. «À partida era visto como um campeonato atraente, cheio de novidades e novos sonhos. O mais competitivo dos últimos anos», recorda Eduardo Maciel.

Do lado louletano, subir na época de estreia não era «um objetivo claro». Preferia antes ter um grupo de homens «fortes, unidos e focados», que ultrapassasse a falta de conhecimento sobre os adversários e as tentativas de descredibilização do projeto.
 

União caracteriza a época do ACF. Foto: João Xavier

No destino estavam outros planos em marcha. E a sobreposição de resultados volumosos veio a ditar metas ajustadas. «Em muito pouco tempo transformámo-nos na melhor equipa do campeonato. Começámos a ser uma equipa difícil de contrariar e o alvo a abater. A partir de determinado momento o maior obstáculo só poderíamos ser nós mesmos», diz o treinador luso-canadiano.

O Algarve CF começou a degustar a liderança à terceira jornada. Partilhou-a rondas a fio com o Sambrasense, mas soube aguentar a perseguição. Atualmente leva oito pontos de vantagem sobre o conjunto de São Brás de Alportel. «Foi muita pressão, mas nunca conseguiram entrar na nossa cabeça. Somos de longe a melhor equipa e seremos mais que justos campeões», garante ‘Eddie’, como é conhecido no balneário.

Como se não bastasse, com recordes metidos pelo meio. Em 28 jogos no campeonato, os «rubro-negros» balançaram as redes adversárias por 97 ocasiões. Contas feitas, é o melhor ataque de Portugal no futebol sénior. «É histórico para quem começou o projeto e compete há menos de nove meses», salienta o técnico, que foi afastado da taça distrital na segunda eliminatória.

Na concorrência direta está o Vista Alegre. O emblema de Ílhavo tem menos um remate certeiro e começou no fim-de-semana a fase de campeão da segunda divisão distrital de Aveiro. Voltando ao sul, existem segredos que expliquem a veia goleadora do clube algarvio? «Existem, mas não vamos abrir mão deles. São esses detalhes que nos diferenciaram dos outros», atira Eduardo.

Um balneário poliglota, «uma bela história de amor»

Nem só de portugueses só constrói o sucesso do ACF. A base é composta por vários estrangeiros, que perfazem seis nacionalidades de cinco continentes distintos. ‘Eddie’ não escapa à honestidade: «Não foi fácil gerir um balneário onde temos franceses que só falam francês, americanos que só falam inglês, brasileiros e africanos. O inglês é a língua mãe no balneário, mas a linguagem do futebol é universal, pelo que nos fomos adaptando», confessa.

O choque cultural trouxe diversão acrescida ao balneário. Em pouco tempo, os forasteiros já reproduziam «com diferentes pronúncias aquelas palavras portuguesas típicas de quem está envolvido no jogo», refere o treinador dos algarvios, indicando que as dificuldades de comunicação aparecem sobretudo nos momentos de tensão.

Seis nacionalidades de cinco continentes no ACF. Foto: João Xavier

«O mais complicado acontece durante os jogos, quando tenho que dar instruções rápidas e diretas de forma coletiva em três línguas diferentes. Superámos tudo com a qualidade de treino e dos atletas. Hoje já jogamos quase de olhos fechados. Basta um olhar ou um gesto para todos entenderam o que pretendo. É uma bela história de amor», relata.

«Uma vitória do futebol, não do dinheiro»

Há um ano, por alturas da fundação do Algarve CF, a imprensa noticiou que existiam investidores asiáticos na sombra do projeto. O presidente desmente qualquer tipo de associação com empresários da Singapura e reclama para si uma aposta de risco.

«As pessoas falam em investimentos sem terem conhecimento de causa. Mas a nossa realidade não é essa, muito pelo contrário. Os pais e investidores deste projeto são apenas eu e mais um sócio. Trabalhamos com um orçamento limitado e corremos o risco de investir com o nosso próprio dinheiro, com as nossas ideias e a nossa filosofia. Os resultados têm mostrado que estamos no caminho certo», esclarece Marco Guimarães, que deixa um aviso aos rivais.

«Ao contrário do que quiseram fazer passar, esta temporada não simbolizou a vitória do dinheiro. Foi a vitória do futebol», abrevia o ex-agente FIFA, sem desprezar as pontes que pode vir a estabelecer com o oriente. «Os grandes negócios estão a passar pela China. Todos os clubes querem ter essa porta aberta. O equilíbrio entre o potencial desportivo em Portugal e a capacidade financeira na Ásia pode ser importante para o nosso desenvolvimento e para as oportunidades concedidas aos jogadores. Nesse aspeto, a Ásia é o futuro», avalia.

«Precisamos de provar o dobro para ter metade»

O Algarve CF tem jogado no Estádio Municipal de Salir. Sem qualquer sócio filiado, costuma ter cerca de 100 pessoas por jogo nas partidas em casa. «A maior parte das pessoas que veem são as gentes de cá [Loulé]. Não cobramos entradas para poder dar a conhecer o nosso futebol», explica Marco. Tirando a ajuda na obtenção de uma sede, o apoio camarário é inexistente.

Eduardo Maciel (treinador) nasceu no Canadá. Foto: João Xavier

Mesmo assim, a hipótese de profissionalizar alguns atletas está em cima da mesa. Falta aparecem patrocinadores identificados com os horizontes previstos pela direção algarvia. «Ninguém patrocina nada nem ninguém do nada. Precisamos de provar o dobro para ter metade. Estamos a dissipar dúvidas, a superar expectativas e a chamar atenção das pessoas», alerta o dirigente máximo, garantindo que o clube está aberto ao diálogo com parceiros externos.

Seja como for, a mensagem de ponderação é transversal de uma ponta à outra. Depois dos primeiros momentos de glória, Marco Guimarães só pensa em manter os pés assentes no chão. «Os nossos investimentos têm que ser realistas e equilibrados. Subimos no primeiro ano de existência, o que é um feito incrível. O próximo objetivo é procurar o nosso espaço, solidificar e manter a equipa na quarta divisão, onde a competição é mais exigente. Não entramos em loucuras, embora tenha a certeza que existem muitas equipas na distrital com um orçamento mais elevado que o nosso», avança, antes de pensar na ascensão aos campeonatos profissionais.