230 Clássicos. Tantas histórias, tantos heróis. Uns óbvios, outros improváveis. Atores de insuspeita credibilidade, craques, figurantes com direito a 15 minutos de fama, enfim, nomes e nomes numa lista interminável de dragões e águias.  

A triagem aperta consideravelmente, porém, se considerarmos elegíveis apenas homens com mais de três golos durante um FC Porto-Benfica. Atacantes (ou não) com a capacidade de espalhar o terror e provocar a tempestade perfeita na baliza do arqui-rival.

O que têm, então, em comum, Julinho e Lemos? São os únicos nesta longa metragem que foram capazes de marcar cinco e quatro vezes, respetivamente, ao adversário em 90 minutos.

O leitor terá pensado em Eusébio, Fernando Gomes, Torres, Jardel, Magnusson, Falcao, mas não. Nenhum deles foi capaz de fazer isto.

António Lemos: um «poker» narrado na primeira pessoa

Julinho, falecido em 2010, marcou cinco ao FC Porto em 1943 (7 de fevereiro). O Benfica venceu esse jogo, a contar para a 5ª jornada do campeonato nacional, por uns impensáveis 12-2. Os golos de Julinho aparecem aos 39 minutos (3-0), 55 minutos (6-1), 60 minutos (8-1), 61 minutos (9-1) e 75 minutos (10-2).

Lemos, o homem do poker ao Benfica, fez quatro na baliza defendida por José Henrique. Estádio das Antas, 31 de janeiro de 1971. Eis os minutos dos golos: 20, 46, 54 e 87. O FC Porto venceu por 4-0. A tarde foi só sua, como recorda numa emotiva conversa com o Maisfutebol.

«Oh, amigo, se me lembro disso? Como é que eu me ia esquecer da minha tarde mais feliz no FC Porto», pergunta-nos o antigo avançado, com toda a pertinência. Aos 64 anos, recupera muito bem de uma intervenção cirúrgica delicada e fala, com a memória dos eleitos, dos tais quatro golos.

Tem a palavra António Lemos.

«O primeiro golo é fácil. O falecido Pavão passa por dois defesas do Benfica e faz-me um passe perfeito. Só tenho de empurrar, quase à boca da baliza», narra, como se estivesse de microfone na mão e tivesse milhares de ouvintes do outro lado da linha.

«O segundo é o mais bonito. É espetacular, mesmo. Começa tudo no Nóbrega. Ele conduz a bola e abre em profundidade. Eu recebo já muito perto da linha de fundo e arranco um pontapé fortíssimo, já sem ângulo. Que golo!»

«No terceiro a bola chega-me do Custódio Pinto. Desmarco-me bem, fico com espaço e, à saída do Zé Henrique, aplico-lhe um chapéu. Ele nada pode fazer», continua Lemos. Falta um para a conta final.

«O último é mérito meu, sim, mas também demérito do Humberto Coelho. Eu já estou debilitado e com dores num joelho, depois de uma pancada, e ele pensa que já não me volto a mexer. Engana-se. O Abel [Miglietti] ganha de cabeça e eu arranco de repente. As facilidades que o Humberto me dá fazem o resto».

Mobília de quarto, guarda-chuvas, camisas e conjunto de tintas: tudo para Lemos


António Lemos marca quatro golos e vai para casa com a mala cheia. «É verdade, é», ri-se, confrontado pelo nosso jornal.

«As empresas investiam muito nessa altura e fazia-se propaganda nos jogos. Cada golo valia um prémio e eu marquei quatro. Levei tudo: uma mobília de quarto, um guarda-chuva, camisas e um conjunto de tintas e pincéis. Foi uma risota no balneário, tive de distribuir as coisas pelos meus colegas».   

Nessa temporada, o FC Porto não vai além do terceiro lugar no campeonato. Atrás de Benfica e Sporting. Os dragões estão em plena travessia do deserto: 19 anos sem chegar ao título.

«Eu estive quase a ser dispensado no início da época, para o Barreirense. Só não fui porque no plenário de diretores votaram a minha continuidade. Fiquei por um voto, segundo me contaram. Na altura era assim», acrescenta Lemos, dando ainda mais ênfase ao feito.

«O Tommy Docherty convidou-me para o ManUtd. Disse-lhe que era doido»

Julinho, já desaparecido, nasce em Leça da Palmeira em 1919. Começa no Boavista, passa pelo Académico do Porto e notabiliza-se no Benfica entre 1942 e 1953. É três vezes campeão nacional e ganha seis Taças de Portugal.

É, ainda, o sétimo melhor marcador de sempre na história do Sport Lisboa e Benfica: 272 golos!

Lemos, pleno de saúde e alegria, é natural de Luanda. Aos 16 anos, em 1966, chega a Portugal pela mão do FC Porto, após brilhar em torneios organizados na antiga colónia.

«Fiquei a morar no lar do clube», explica ao Maisfutebol. «O meu colega de quarto era o Gualter. Aliás, ainda lá estava quando fiz os quatro golos. Nessa semana não gastei um tostão, toda a gente me queria pagar almoços e jantares».

Após breve cedência ao Boavista, Lemos fica no plantel do FC Porto entre 1970 e 1973. É aí que é mobilizado para a guerra colonial e a carreira de futebolista fica fortemente comprometida.

«Um treinador nosso, o Tommy Docherty, convidou-me para ir com ele para o Manchester United. Em 1972. Eu disse-lhe: mister, você é doido, Portugal é uma ditadura. Não sai ninguém de cá, a não ser para a guerra. E mal sabia que era isso que me ia tocar»
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Julinho e Lemos: mestres do Clássico.