Quinze treinos por semana, 100 km a nadar. Cansa só de ouvir Angélica André falar sobre a sua rotina, aquela que repete há anos, desde que venceu o medo de nadar longe da segurança da piscina e chegou à elite. Com a intensidade e o foco que a levou em fevereiro ao bronze no Campeonato do Mundo e, de caminho, à sua segunda presença olímpica. Agora, a representante portuguesa na natação de águas abertas em Paris aponta a melhorar o que fez em Tóquio e, a partir daí, quem sabe. Sem receio de se aventurar nas águas do rio Sena.

Foi em Doha que Angélica André subiu ao pódio nos 10km e conseguiu a primeira medalha feminina da natação portuguesa em Mundiais. Quatro meses mais tarde, ela revive aquele momento como se ainda estivesse lá.

«Agora é tudo meu»

«Quando passei em sétimo a entrar para a última volta, pensei: ‘Agora é tudo meu.’ Tudo meu é como quem diz, mas os meus pensamentos eram estes: ‘Agora é só para a frente. É a reta final, é a qualificação para os Jogos. Agora ninguém passa por mim.’ Passei a lutar a cada boia, a tentar fazer estratégia para ficar sempre um bocadinho mais à frente.’» E quando faltavam duas boias para a reta final, para aí 600m, pensei: ‘Pá, é manter e continuar a lutar. E quando chegarmos à boia, o ritmo vai abrandar um bocadinho e tu ainda vais ficar mais nos pés de quem está à tua frente.’ Quando contorno a última boia, estava em quarto ou quinto lugar. Aí tinha ideia que podia lutar pelo pódio também. Quando entrei no funil da reta eu assim: ‘Ei, estou em terceiro. Vamos, vamos, vamos.’ E fui a dar tudo, para ver se conseguia chegar um bocadinho mais à frente ou se podia ficar em segundo, o que fosse. Mas com o terceiro eu já estava super radiante.»

Quando chegou, demorou uns momentos a confirmar que tinha mesmo conseguido o pódio. «Eu toco e fico em terceiro, mas não tenho a certeza absoluta. Contei as nadadoras, vi se estava alguém de fora e então olhei para o placard. Entretanto o treinador que que me acompanha nas provas, o João Viola, e a minha fisioterapeuta, a Joana, vêm a correr feitos malucos, doidos para me abraçar e para festejarmos. Para viver aquele momento. Porque o momento é ali, não é? Agora já passou.»

Já passou, mas fica como um momento memorável, a consumar a ascensão sustentada da nadadora de 29 anos. Em 2022 foi terceira no Europeu, há um ano foi quarta nos 5km nos Mundiais e para este ano apontou à medalha como objetivo, além da qualificação olímpica naquela que era a última oportunidade.

A viver o melhor momento da carreira...

«Os meus resultados mostravam que eu podia estar a lutar por uma medalha, porque entre o primeiro e o 17º, mais ou menos, pode dar para qualquer uma. Era só estar no sítio certo à hora certa. E antes da prova eu e o meu treinador pensámos: ‘Mais que a qualificação, temos de pensar que também é um Mundial e que podemos disputar uma medalha. Vamos lutar por isso.’ E foi isso que fizemos.»

«É terceiro, mas se fosse quarto ia doer. Já fiquei em quarto duas vezes no Europeu e no Mundial e custa pensar que estive tão perto. Às vezes as pessoas não têm noção, mas pode decidir-se num detalhe», diz, a fazer questão de partilhar o momento com quem a acompanha. «Fico super contente por estes resultados, porque sou eu que dou o corpo às balas, mas também é fruto do trabalho das pessoas que estão comigo. O meu treinador, o José Manuel Borges, a nutricionista, a fisioterapeuta, a psicóloga, mais os treinadores-adjuntos do FC Porto. Eu não sou só atleta, também sou uma pessoa e eles sabem isso. Não é só números, números.»

Angélica André está a viver o melhor momento da sua carreira. «Eu costumo dizer que espero sempre que esta época seja melhor que a época passada. E nos últimos anos tem sido assim, tenho uma sequência de bons resultados. Claro que em parte as medalhas são aquilo para que nós trabalhamos, para dizermos: ‘Fogo, valeu a pena, eu consegui.’

...e um tempo especial na natação portuguesa

É um tempo especial para ela e para a natação portuguesa. Angélica André conseguiu a medalha em Doha dias antes de outro português brilhar ao mais alto nível nesses Mundiais. Diogo Ribeiro ganhou duas medalhas de ouro, nos 50m e nos 100m mariposa, uma prestação que atraiu ainda mais atenção sobre o jovem fenómeno português.

«Há muita atenção sobre o Diogo Ribeiro. Não tanto sobre mim, não tive tanto mediatismo. Fala-se mais sobre ele, porque, como é óbvio, foi campeão do mundo duas vezes, com todo o mérito. E as águas abertas não têm tanta visibilidade como a natação pura. Agora, claro que isso é muito bom para a natação. A natação está na boca do país», diz Angélica.

E a modalidade vive «sem dúvida» um bom momento, a que é preciso dar continuidade, acrescenta. «Ainda agora tivemos uma campeã da Europa nos 200m costas, a Camila Rebelo. Temos tido bons momentos ultimamente, mas é preciso continuar a trabalhar e trabalhar com os mais novos, com a formação, porque não vai haver muitos Diogos Ribeiros, não vai haver muitas Camilas e Angélicas. É preciso continuar a trabalhar, porque estes nadadores não vão durar para sempre.»

Do bairro para a piscina

Angélica nada há muito tempo. Foi ela que escolheu a natação, quando tinha seis anos e os pais decidiram que seria bom para ela e para os dois irmãos dedicarem-se a um desporto. «Chegou uma altura em que eles nos perguntaram qual era o desporto que nós queríamos seguir. Nós sempre vivemos num bairro e era um bocado para não estar naquele ambiente, para termos rotinas e disciplinas e tudo o mais. E eu disse logo que queria ir para a natação.»

Os irmãos dividiram-se, um para o futebol primeiro, depois os dois para o voleibol. Angélica, a mais nova, continuou na piscina. Rapidamente percebeu que tinha mais potencial para as disciplinas de fundo. «Aos 16 anos fui recordista nacional absoluta, aos 1500 e aos 800 livres, tanto em piscina curta como longa. Eu nado um bocadinho de tudo. Mas o fundo é sem dúvida, onde sou melhor. Sobressaio mais.»

Um dia, surgiu a hipótese de experimentar as águas abertas. De início, não lhe agradou. «Quando era mais nova, tive duas experiências de águas abertas e desisti, porque não me conseguia ambientar muito bem. Tinha medo dos peixes e assim», sorri. Era o medo de não saber o que podia encontrar debaixo de água.

«Ainda hoje eu não gosto muito de me aventurar sozinha. Não vou ao mar nem vou nadar sozinha. Se antes de uma competição vamos fazer o reconhecimento ao local da prova, por exemplo, gosto de estar com pessoas ao meu lado.» Em competição, tudo é mais controlado, explica. «Em provas esse medo sai todo, porque as provas são feitas em locais em que não acontece nada. Pode aparecer uma raia, uma tartaruga, alforrecas, mas coisas assim de maior perigo não.»

Do «medo dos peixes» às águas abertas, na terceira tentativa

Foi a insistência do seu treinador que a levou a converter-se finalmente às águas abertas. «Fui a uma prova de 10 km em Setúbal, em 2011, e ganhei. A seguir fui chamada para algumas concentrações onde juntavam os nadadores nacionais de águas abertas. Depois fui segunda no Campeonato Nacional e fiz a qualificação para os Jogos de 2012. Não me apurei, era muito nova e muito inexperiente, mas começou assim.»

Nunca apanhou um grande susto dentro de água, mas já teve alguns encontros indesejados. «Fui picada por alforrecas duas vezes. Da primeira desisti, da segunda não. É uma picada de outro mundo», suspira. «Da segunda foi mais leve um bocadinho.»

Em águas abertas, o contexto é muito diferente de uma piscina. Há menos controlo, nota a nadadora portuguesa. «As águas abertas têm sempre condições adversas, para que temos de estar preparados.» Ondas, correntes, vento, uma série de factores que é preciso ter em conta. «Na piscina não há nada disso, é tudo muito certo. A piscina é um espaço mais fechado, enquanto nas áreas abertas é mais livre, estamos mais próximos da natureza.»

O treino para provas de longa distância também é necessariamente diferente. «É um bocado intenso», sorri: «Eu faço 15 treinos semanais, dez na água e mais cinco de ginásio. Normalmente a sessão na água são 10 km, mais ou menos, para dar 100 km. Pode variar entre os 90 e os 115. Se vamos para a Sierra Nevada, para estágio de altitude, então existem mais sessões de treino e chegamos aos 115 km.»

Nesta altura, Angélica André faz essencialmente treino em piscina. «Não há necessidade de ir para águas abertas porque já sou experiente. Numa fase inicial faria sentido ir para o mar ou para o rio, para me poder ambientar. Neste caso não, porque o que interessa mais acaba por ser o ritmo de prova e para isso há um maior controlo em piscina.»

Insistir nos estudos, mesmo «sem pressa»

Nos últimos anos, com a mudança em 2021 para o FC Porto, ela passou também a estar mais acompanhada nos treinos. «No outro ciclo olímpico eu treinei um bocadinho mais sozinha. Agora, com mudança para o FC Porto treino com a equipa e sinto uma grande diferença nesse sentido.»

Angélica André tem conseguido conciliar o treino com os estudos. Licenciou-se em treino desportivo e agora está a tirar o mestrado em condição física no Instituto Politécnico da Maia. Vai devagarinho, mas vai, como ela diz. «Até ao 12º foi tranquilo. Tranquilo entre aspas, que acabei por fazer o 12º ano em dois anos, porque não dava. Depois, fiz a licenciatura em cinco anos. Eu não tenho pressa, porque tenho de aproveitar agora o momento como atleta. A natação está em primeiro lugar. Mas vou fazendo. Eu comprometo-me a fazer quatro cadeiras no primeiro semestre e quatro no segundo e faço. Agora estou no mestrado, mas dividi-o em dois anos. Foi sempre com alguma calma, mas nunca quis deixar os estudos, porque também eram um escape.»

Fica também com bases para um futuro depois da alta competição. «É bom ter várias chaves no porta-chaves.» Ainda não decidiu o que fará, porque a natação continuará a ser o seu foco nos tempos mais próximos, mas imagina que seguirá a vertente da formação. «Gosto da área do treino, em especial nas camadas mais jovens. Não tenho muita experiência, só tenho experiência como nadadora, mas era uma área que eu gostava de seguir.»

Pensar em desistir e o apoio psicológico

O processo não foi linear. O trajeto no desporto não é sempre a subir e Angélica André já passou por momentos mais difíceis. Quando ficou à porta da qualificação para os Jogos Olímpicos de 2016, por exemplo.

«Para o Rio eu era já era favorita para ir aos Jogos. Na prova de qualificação, fui muito com o coração, assumi sempre a prova e depois nos metros finais não consegui mais. Estava com um desgaste enorme», recorda. «Claro que é doloroso, porque é um sonho que acaba, só acontece de quatro em quatro anos e se calhar poderia nunca acontecer outra vez ir. Estava ali tão à porta de uns Jogos Olímpicos e ter esse sonho adiado mais quatro anos, que neste caso até foram cinco, foi complicado. Tive ali depois um ano em que não me saí tão bem em termos de treino e tudo. Mas acho que serviu para aprender e continuar a lutar.»

Angélica André fala abertamente sobre essas dificuldades e sobre a forma como o apoio psicológico pode ajudar os atletas. Ajudou-a a ela, que, passou por uma fase difícil antes da qualificação para Tóquio e chegou a pensar desistir. «Foi um ano antes dos Jogos de Tóquio. Não me estava a sentir bem, psicologicamente não estava forte. Tive ali uma semana bem complicada para digerir aquilo tudo. Na altura trabalhei para melhorar esse estado de espírito e controlar as minhas emoções para poder ir à qualificação tranquila.»

Ela vê algum preconceito em relação ao tema da saúde mental dos atletas, mas acha que isso tem mudado. «Ainda existe tabu, mas acho que agora somos um bocadinho mais abertos a isso. Eu sempre fui. Fui acompanhada desde muito jovem e os meus pais sempre foram muito tranquilos em relação a isso. Sinto que é uma peça fundamental para o meu puzzle. Ter uma psicóloga é fundamental para eu estar bem, estar tranquila e conseguir gerir o meu dia a dia. Porque nem todos os dias são dias bons e ter a ajuda de um profissional, pá, é incrível.»

«Vingar» Tóquio em Paris 

Esse trabalho ajudou na qualificação para os Jogos de Tóquio. «Já fui mais preparada, já trabalhei melhor em termos psicológicos, para chegar ao momento e estar bem.»

Chegou bem ao Japão, mas a prova não correu como ela esperava. Terminou em 17º lugar. «Eu andava a treinar com a Ana Marcela, que foi campeã olímpica, inclusive antes de irmos para Tóquio. Com os registos de treino que eu estava a fazer, esperava ter feito um bocado melhor. Até podia ter ficado em 17º, se chegasse com o grupo. Mas eu fiquei a cinco minutos da primeira. Isso é que me deixou mais triste», observa, a tentar encontrar explicações. «Os Jogos são diferentes, o entusiasmo é diferente. E Tóquio era muito quente. A minha prova foi às 6:30 da manhã, e a temperatura da água estava a 28°, cá fora estavam 30 e muitos, muita humidade.»

Ela dá-se melhor com condições mais adversas. «Gosto da água a 18º e gosto de ondulação.» Mas no fim de contas, encara a experiência de Tóquio como uma aprendizagem. «Não fico desanimada de todo porque foi a minha a primeira experiência. Não é como um campeonato nacional, um Europeu ou um Mundial. Os Jogos Olímpicos são diferentes.»

Desde que conseguiu a qualificação para Paris, Angélica André assumiu como objetivo «vingar» a sua prestação de Tóquio. Isso significa melhorar aquele 17º lugar, antes de mais. «Esse é o meu principal objetivo. Continuei a trabalhar e a lutar para poder estar em Paris e vingar um bocado a classificação que tive em Tóquio. Esse é o objetivo. E tudo o que vier depois, eu acho que será muito bom.»

O bronze nos Mundiais elevou as expectativas sobre o que poderá fazer nos Jogos Olímpicos, admite. «Claro, até porque o Mundial foi o último momento que nós tínhamos para nos apurar e estavam lá as atletas todas que vão estar em Paris. Por isso, claro, ambicionar mais é possível. Não é impossível ir a medalhas, mas acho que temos de ir com calma. É um objetivo plausível, porque fui medalha no Mundial. Mas o meu primeiro objetivo é, sem dúvida, fazer melhor que Tóquio.»

O sonho olímpico, «tranquilo» em relação à poluição no Sena

«Os Jogos Olímpicos, epá, é um sonho. Mas com calma», suspira. «Sonho mais um bocadinho por causa dos resultados e pelo pico de forma em que estou. E por as outras atletas verem que eu não sou só um número. Sou a Angélica André e posso estar a lutar por algo também.»

A competição olímpica de águas abertas está prevista para o Sena e o aproximar da data não afastou as dúvidas sobre as condições sanitárias da água do rio que atravessa Paris. A cidade construiu um reservatório gigante como parte do plano de combate à poluição, mas as análises continuam a mostrar valores acima do recomendável. Ainda não é certo o que acontecerá se não puder haver competição no Sena, mas Angélica André não perde muito tempo a pensar nisso.

«Para mim é tranquilo, não há problema nenhum em nadar no Sena. Eu acho que já nadei em sítios iguais ou piores. Eles fizeram o reservatório e tudo, mas não si. A prova está marcada para dia 8 e pode adiada para dia 10. Mas por mim qualquer coisa dá.»