Atropelando todas as regras da clareza e da lógica, esta crónica começa pelo minuto 71, com um parágrafo de homenagem ao golo de Cardozo. Porque é um daqueles momentos mágicos, que levam pessoas aos estádios e fazem com que haja tantos miúdos a gostar de futebol. E porque mudou por completo o filme de um jogo que, até aí, estava transformado num hino à banalidade.

Feito este preâmbulo, volte-se ao princípio. Para dizer que até Cardozo mandar o pé direito às compras, o golo do regressado Lima, aos 10 minutos da primeira parte, e a expulsão de Filipe Gonçalves, aos 10 da segunda, delimitavam os contornos de uma vitória cinzenta, que permitia ao Benfica comprar tempo e destapar a panela de pressão, depois de uma semana de intenso namoro com a depressão.

Jesus fez quatro alterações em relação ao onze de Paris, com a maior surpresa a passar pela recuperação da dupla Rodrigo-Lima na animação do ataque. Cardozo ficou no banco, sacrificado a uma estratégia que, em princípio privilegiava a mobilidade na frente, até porque o retomar da dupla Enzo-Matic, no eixo, abria espaço a Markovic, na direita.

Mas, atraiçoando um começo animado, o jogo estacionou num impasse sem graça logo os 10 minutos. Tudo começou num corte de Rúben Fernandes, para a linha do fundo. Na tentativa de evitar o canto, Yohan Tavares deixou a bola nos pés de Gaitán, que arrancou um cruzamento de classe, ao segundo poste, onde Lima aproveitou a solidão passiva de Babanco para quebrar um jejum de mais de um mês.

O golo calmante teve efeitos radicais no paciente de vermelho, que pôde recuar as linhas e baixar o ritmo até à sonolência. Mas teve-os também no Estoril que, por força da desvantagem, passou a ter menos espaços para explorar as transições rápidas, a sua melhor arma. Com a influência de Evandro limitada, os canarinhos passaram a ter bola, mas poucas soluções para chegar à baliza de Artur.

Pouco mais haveria a dizer sobre a primeira parte, não fosse nova lesão muscular no Benfica – Markovic saiu de maca aos 27 minutos – e o critério severo do árbitro Manuel Mota, patente no número alto de cartões com que foi pontuando um jogo relativamente calmo.

Em cima do intervalo, o Benfica, que só num livre de Rodrigo por cima tinha voltado a inquietar Vagner, teve a bola de KO nos pés, quando, em tempo de descontos, uma cabeçada de Gonçalo bateu no braço de Rúben. Mota apitou para a marca de penálti, mas Lima permitiu a Vagner a primeira defesa do jogo. Sim, a primeira: diz muito sobre o que foram as coisas até aí, certo?

Cardozo agita

Na segunda parte, a ordem de aquecimento para Cardozo provocou o primeiro aplauso dos adeptos do Benfica em muitos minutos. O segundo, viria com o segundo amarelo a Filipe Gonçalves, aos 55, a deixar o Estoril com um homem a menos e a sugerir que, mais bocejo menos bocejo, o jogo estava resolvido.

Engano, porque no futebol as coisas acontecem muito depressa. A partir dos 70 minutos, foi como se alguém tivesse carregado num botão de fast-forward: ao cruzamento de Maxi, Cardozo correspondeu com um remate mágico de pé direito, sem hipóteses para Vágner. Marco Silva, que preparava uma dupla substituição, com Balboa e Gerso para disfarçar a falta de um homem, não mudou os planos e viu, no pontapé de reatamento, Evandro quase surpreender Artur com um remate do meio campo.

Estava dado o toque de dramatismo que faltava porque, na sequência do lance, o Benfica sofreu o seu quarto golo de canto em três jogos, e a cabeçada de Balboa destapou todos os fantasmas que o golo de Lima tinha encoberto até aí. Sem consistência na posse, sem serenidade e uma voz de comando, o Benfica - mesmo falhando uma oportunidade claríssima por Lima - expôs-se ao ânimo canarinho nos minutos finais, desperdiçando a vantagem numérica na expulsão (natural) de Maxi, e acabando com o credo na boca, numa recarga a remate de Evandro que aterrou nas malhas superiores, com a defesa em pânico. 

Tudo somado, entre a sonolência e a arritmia, o Benfica consegue sair da Amoreira com os três pontos, respeitando a tradição num campo onde costuma ser feliz. O Estoril perde a invencibilidade caseira que guardava desde janeiro, mas volta a deixar a ideia de ser uma equipa sólida, e com identidade bem definida. Algo que o Benfica continua sem poder dizer de si mesmo, apesar dos três pontos.