* com Bruno José Ferreira

O relógio fugia um pouco das duas da tarde quando o Maisfutebol é recebido por João de Deus, no seu gabinete no Cidade de Barcelos. Em cima de uma mesa, que vai servir de apoio a uma conversa que durou mais de uma hora, apenas três coisas: a velhinha prancheta, um computador e um ipad.

Passado, presente e futuro lado a lado como cenário de uma entrevista que também caminha pelos mesmos moldes. João de Deus mostra ser um treinador de pés bem assentes na terra, consciente de que os resultados ajudam à tranquilidade que o clube vive, que sabe de onde veio, reconhece o meio em que está e não se preocupa com o que está para vir.

Com o Gil Vicente vai estabelecendo um elo de ligação cada vez mais forte. Ajudou ao melhor arranque de sempre da equipa na Liga, acredita na manutenção e não quer falar em muito mais do que isso.

Prefere, por exemplo, abordar o dia a dia. E o gosto pelo futebol. E as ideias diferentes que não nascem só de si. «Toda a gente na equipa técnica vai dando ideias e saem sempre coisas boas», explica.

Vem isto a propósito de uma tarde no rio, em prova de caiaques que o plantel cumpriu recentemente. «Os jogadores já sabem que quando há uma pausa do campeonato, depois de uma folga de três dias o primeiro treino será diferente. Só não sabem o quê. Já fizemos caiaque, paintball, beach soccer...», explica.

Apenas um dado curioso. Entre muitos. João de Deus não esconde alguns dos seus métodos de trabalho. A meio da conversa, por exemplo, sacia a curiosidade do Maisfutebol quando fala em rever o trabalho diário. «Filma os treinos?», perguntámos. «Querem ver?»

E o seu computador começa a mostrar imagens em câmara lenta de um exercício, com notas de rodapé sobre o que determinado jogador fez certo ou errado. Mais um pormenor, claro. João de Deus é homem destes pormenores para o mesmo objetivo de todos: ganhar.

Quando decidiu que queria ser treinador de futebol?

Quando tive o meu primeiro computador os jogos eram sempre de estratégia de futebol. Era sempre a mesma coisa. Gosto do fenómeno. Gosto do jogo, de estudar, de interagir, de conversar sobre futebol. Tivemos agora esta paragem de uns dias. No sábado, depois do jogo, estive excelente com a família. No domingo, excelente com a família. Segunda-feira, excelente com a família mas a faltar qualquer coisa. Terça-feira, excelente com a família mas a faltar muita coisa. E quarta-feira quando aqui cheguei para trabalhar vim satisfeito. E reparei que não devo ter sido o único a passar por isto: cheguei meia hora antes da hora marcada e já cá estavam todos.

Sente que é melhor treinador do que foi jogador?

(Risos)

Não estamos a desvalorizar o João de Deus como jogador, atenção...

(Mais risos) Como jogador não era muito competente. Tenho isso bem presente. Até porque em termos daquilo que são as qualidades inatas para a prática... Não consigo dar dez toques com o pé direito, por exemplo. Sinceramente não consigo fazer esse paralelismo. O que é um bom treinador? Bom é o que ganha e mau o que perde? Parece-me redutor. Há o trabalho de campo, capacidade de observação, deteção de talentos, conhecimento de outras área inerentes ao processo de treino, relações interpessoais. É um conjunto de valências que torna difícil dizer se alguém é bom treinador ou mau treinador.

Quando era jogador já dava por si a questionar opções dos treinadores e a pensar como faria se fosse o João de Deus a decidir?

Um dos grandes problemas é que eu pensava muito pouco o jogo. Diziam-me corre para ali, ou chuta para ali e eu fazia o que me mandavam. E bem. Mas a verdade é que não tinha uma grande leitura do que estava a acontecer e porque era assim.

Que balanço faz dos primeiros cinco meses de Gil Vicente?

Para já, é um balanço muito positivo. Extravasando aquilo que são os resultados, eu costumo dar importância às relações interpessoais e às sinergias que se vão estabelecendo entre o grupo e a estrutura em si. Também tenho consciência que de alguma forma os resultados ajudam a potenciar tudo isto.

Como é o relacionamento com o presidente António Fiusa?

Se os resultados ajudarem, as relações tendem a ser melhores. Mas há uma coisa que já percebemos um no outro. Ele compreende a minha necessidade de ganhar e eu compreendo a necessidade dele de fazer crescer e evoluir o clube. A relação acaba por ser boa porque cada um, à sua maneira, quer melhorar. Mesmo que, por vezes, eu pudesse não estar tão motivado ou não estar com tanta vontade de fazer mais e melhor, sentir-me-ia impelido a fazê-lo porque vejo que quem manda quer que isto ande para a frente.

E vai andar para a frente até onde? Esta equipa tem condições para jogar na Europa ou para fazer a melhor classificação de sempre?

Não me parece que seja possível suplantar o Gil Vicente do Álvaro Magalhães. Em primeiro lugar porque a equipa tinha um belíssimo treinador nessa altura e depois porque os nomes dos jogadores que compunham aquele elenco são de altíssimo nível. Por muito bem que façamos este ano, nunca conseguiremos estar ao nível daquela equipa que, salvo erro, fez 5º lugar com 50 pontos. Um absurdo... Está completamente fora de questão. Somos conscientes e sabemos que este momento é bom mas, como todos os outros, vamos ter momentos menos bons. E estamos preparados para eles. Estamos mais perto da meta da manutenção e esse é o nosso foco, nada mais. Temos 30 pontos como meta e vamos tentar isso. Mas queremos jogar bom futebol e divertir-nos a ajudar. Se conseguirmos tudo isso, a nossa época está conseguida.

Quais são os pontos fortes do Gil Vicente?

Numa coisa a nossa equipa é forte: a equipa é muito unida, não só dentro do campo, mas também fora dele. Conseguimos com alguma facilidade encontrar focos de amizade que extravasam esta questão de trabalharmos todos para a mesma instituição. Conseguir levar isso para dentro do campo acaba por ser uma mais valia e é a nossa maior virtude, se calhar a única grande virtude que temos. Eles são capazes de sofrer uns pelos outros e têm este ideal da amizade e da união.

O Draman, que foi dispensado, não se enquadrava nesse espírito de união?

Se perpetuamos um ambiente salutar e se tenho um indivíduo que não concorre para essa harmonia e que não está enquadrado com esta dinâmica de grupo que se gerou está fora, está eliminado. Dar exemplo ao balneário? Não preciso de lhes mostrar nada. Os jogadores do Gil são inteligentes e percebem que o que nos torna mais fortes tem de ser intocável e as nossas fragilidades têm de ser escondidas. Foi uma questão pacífica.

O João de Deus também é um dos pontos fortes deste Gil Vicente?

Sou apenas mais um, entre todos os que compõem este grupo. Tenho a certeza que em qualquer organização a soma das partes faz o todo e de certeza que existem momentos em que a equipa técnica consegue potenciar jogadores, mas também tenho a convicção que os jogadores fazem de nós melhores.

Como é o seu dia a dia no Gil Vicente?

Acordo às 8h, às 8h45 tomo o pequeno-almoço com o grupo, às 9h treino e depois almoço, sempre que possível, com os restantes membros da equipa técnica. Depois, à tarde, aproveito para ver adversários, ver jogos, ver todo o trabalho que o Pedro Pinto, que é o nosso técnico de observação me põe no computador, e que é uma base importante. Ia agora mesmo ver o treino de hoje, fragmentar o treino e amanhã de manhã antes do treino eles já estão a ver momentos do treino e a ver aquilo que fizerem bem e mal.

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