Até esta época, a única memória que existia em Antuérpia da Taça dos Campeões Europeus tinha 66 anos. Em 1957, o então campeão belga teve 55 mil adeptos no Bosuilstadion a assistir a uma derrota tangencial com o Real Madrid, antes de ser arrasado no Bernabéu com um 6-0. Foi preciso esperar até 2023 para o clube mais antigo da Bélgica voltar a festejar o título de campeão, em modo épico. E foi um toque neerlandês a dar o impulso decisivo para o renascimento do histórico que esteve perto da extinção, há apenas seis anos andava pela segunda divisão e se prepara para receber nesta quarta-feira o FC Porto.

Fundado em 1880, o Royal Antuérpia ostenta no símbolo o número 1, que corresponde à primeira matrícula nos registos da Federação belga. O clube a que também chamam Great Old andou muito para chegar aqui, à estreia na fase de grupos da Liga dos Campeões. Numa história com 143 anos couberam momentos felizes, como as conquistas de dois campeonatos nacionais quase consecutivos em 1929 e 1931, a que se seguiram mais dois, o último deles em 1957. Ou a presença na final da Taça das Taças de 1993, perdida para o Parma, naquela que foi a última presença de um clube belga numa final europeia e é também o mais alto momento internacional do Antuérpia. Mas, durante décadas, a realidade foi dura.

 

A queda e a paixão que não se extinguiu

Com uma passagem de duas épocas pela segunda divisão na viragem para a década de 70 e uma sucessão de temporadas irregulares, o Antuérpia foi descendo patamares na hierarquia do futebol belga. A conquista da Taça da Bélgica em 1992 e a final europeia na época seguinte foram os últimos marcos positivos em campo, antes da queda. A uma primeira descida de divisão no final dos anos 90 seguiu-se nova queda em 2004, desta vez para uma longa travessia de 13 anos longe do topo, a penar numa espiral de frustrações desportivas, episódios de violência envolvendo adeptos e problemas financeiros que por mais de uma vez deixaram o Antuérpia em risco de extinção.

«Basicamente, o clube não se adaptou à forma como o futebol estava a evoluir, como fizeram outros clubes belgas, e havia muitos problemas», diz Paul Bistiaux, que foi secretário-geral do Antuérpia ao longo de duas décadas, até 2015, ao The National: «Para mim o milagre foi termos sobrevivido ao período mais difícil da história do clube.»

Ao longo dessa travessia, o Antuérpia não perdeu a sua base de adeptos fiel e fervorosa. No segundo escalão, teve sempre assistências médias acima dos cinco mil espectadores. «Os adeptos do Antuérpia continuaram a aparecer aos milhares em pequenos estádios», recorda por sua vez à BBC Lennart van Walsum, que preside ao clube de adeptos do Antuérpia no Reino Unido: «Nos últimos anos é fácil ser um adepto positivo, mas muitos apoiaram o clube quando estava quase morto e enterrado.»

A ligação ao Manchester United e Cristiano Ronaldo no Bosuil

Nesses tempos, o Antuérpia aparecia nas notícias internacionais apenas por causa da ligação ao Manchester United. Os dois clubes mantiveram entre 1998 e 2013 uma parceria, bem antes de esse tipo de relações se ter tornado prática comum, a qual fez do clube belga ponto de passagem para vários jovens dos «Red Devils». Danny Higginbotham, John O’Shea, Luke Chadwick ou Jonny Evans foram alguns dos que passaram por Antuérpia na fase final da sua formação.

Em 2005, essa ligação levou também a equipa principal do Manchester United, com Cristiano Ronaldo e companhia, até ao Bosuilstadion, para um jogo integrado nas comemorações dos 125 anos do Antuérpia.

Os milhões do novo investidor e a bancada deserta do estádio

Passou muito tempo até as coisas começarem a mudar para o Antuérpia e o ponto de viragem foi a entrada em cena de Paul Gheysens. O empresário da construção civil e imobiliário, que tem uma fortuna estimada em mais de mil milhões de euros e entra na lista Rijkste Belgen como o 37º homem mais rico da Bélgica, chegou ao Antuérpia de forma discreta, primeiro, numa fase em que até admitiu investir noutros clubes, entre eles o Anderlecht. Mas a partir de 2017 assumiu a aposta no clube, onde já terá investido qualquer coisa como 115 milhões de euros, bem como na reabilitação do estádio Bosuil.

Esse é ainda um processo em curso. O Bosuil é um estádio centenário – foi inaugurado em 1923. Foi aliás o palco da final da Taça das Taças ganha pelo Sporting em 1964. Mas os tempos da lotação superior a 50 mil lugares deram lugar a uma degradação progressiva, que levou ao encerramento de bancadas e ameaçou o futuro do recinto.

Gheysens renovou grande parte do estádio, menos uma das bancadas centrais. Uma situação bizarra, consequência de um impasse que decorre dos tempos de aflição do Antuérpia. Na sequência de um pedido de empréstimo do clube para saldar dívidas, em 2008, os terrenos onde está o estádio são propriedade da empresária Tania Mintjens, que mantém um diferendo com Gheysens, inviabilizando a renovação da chamada Bancada 2, que está há anos fechada por razões de segurança. O processo ainda não tem fim à vista e o cenário que espera o FC Porto é de um estádio moderno, mas com um enorme vazio nessa bancada deserta.

No plano desportivo, as coisas começaram a mudar para o Antuérpia logo em 2017, época do regresso do clube ao primeiro escalão. A forma como se viveu essa subida e como a paixão dos adeptos se manteve bem acesa ao longo dos tempos foi retratada num documentário que acompanhou por dentro a equipa ao longo de dois anos até ao regresso à Jupiler League em 2017. Da autoria de Luk Wins, adepto de sempre do Antuérpia, o filme chama-se Take us Home.

 

A parceria com o FC Porto

A partir daí, o Antuérpia consolidou-se no principal escalão, numa fase em que a política desportiva foi liderada por Luciano D’Onofrio. Foi sob a alçada do dirigente e empresário, que tem uma ligação de longa data ao FC Porto e também a Sérgio Conceição, que o Antuérpia estabeleceu uma parceria com os dragões.

Anunciado em junho de 2017, o acordo tinha uma duração prevista de três anos e definia como objetivo a «troca de know-how entre os dois emblemas e o desenvolvimento de jovens jogadores provenientes dos escalões de formação». A face mais visível dessa parceria foram as transferências para o Antuérpia do extremo Ivo Rodrigues e do guarda-redes Sinan Bolat, ainda no verão de 2017.

Mas há outros pontos de contacto entre os dois clubes. Vedran Runje, o antigo internacional croata que foi companheiro de equipa de Sérgio Conceição no Standard Liège e em 2021 trocou o Antuérpia pelo FC Porto, continua integrado na equipa técnica dos dragões, como treinador de guarda-redes.

O Antuérpia foi crescendo. Em 2020 venceu a terceira Taça da Bélgica da sua história e em 2020/21 chegou aos 16 avos de final da Liga Europa, depois de terminar em segundo no grupo, numa campanha que incluiu uma vitória sobre o Tottenham então de José Mourinho.

Overmars, da polémica no Ajax a aposta no Antuérpia

Depois de quatro épocas a terminar entre os quatro primeiros na Liga belga, o clube deu um passo determinante em 2022. Não foi isento de polémica. Em março desse ano, o Antuérpia decidiu avançar para a contratação de Marc Overmars para diretor-desportivo. Tinham passado apenas seis semanas desde que o antigo internacional deixara o Ajax, depois de várias funcionárias do clube o terem denunciado por assédio e comportamentos inapropriados.

«Prometo que aquilo que aconteceu no Ajax não se vai repetir. Quero deixar esse capítulo para trás o mais depressa possível. Foi uma saída muito triste, mas é preciso superá-la», disse Overmars à chegada a Antuérpia. Sven Jacques, diretor-geral do clube belga, também procurou arrumar o assunto em poucas palavras: «Conversámos por muito tempo. Ouvimos o que ele tinha para dizer, sabemos o que aconteceu e deixamos claro quais são os nossos valores. Não falámos especificamente do assunto com as funcionárias do nosso clube, mas tudo foi discutido.»

Do ponto de vista desportivo, o trabalho de Overmars não precisava de recomendações. Durante anos, ele foi o homem por detrás do sucesso do Ajax – e muitos apontam a sua saída como uma das principais razões para o atual declínio do gigante neerlandês.

No Antuérpia, Overmars recorreu à sua experiência e aos seus contactos para consolidar o projeto. Começou por apostar para o banco no compatriota e antigo companheiro Mark Van Bommel. Não era uma aposta óbvia, num treinador que tinha até então experiências pouco auspiciosas no PSV Eindhoven e no Wolfsburgo.

A juntar ao novo treinador, o Antuérpia construiu um plantel que combinou experiência e juventude. Aprofunou a ligação neerlandesa com a aposta ganha no veterano avançado Vincent Janssen ou com a contratação do médio Jurgen Ekkelenkamp, que chegou do Ajax. E conseguiu garantir o mediático regresso de Toby Alderweireld, uma das referências da geração de ouro da Bélfica, natural de Antuérpia e que passou aliás pela formação do Beerschot, o grande rival do Great Old. Além disso, apostou no potencial de jovens como o médio Mandela Keita ou o extremo Balikwisha, além de ter potenciado a joia da formação do clube, o adolescente Arthur Vermeeren.

Alderweireld aos 93.33 e o conto de fadas com 66 anos

O Antuérpia começou a época 2022/23 a vencer os primeiros nove jogos seguidos na Jupiler League e a ganhar um embalo que garantiu o terceiro lugar na fase regular e manteve acesa a esperança do título. Tudo se decidiu na última jornada do play-off e foi épico. Nos minutos finais daquela ronda houve três campeões virtuais – Genk, Union St. Gilloise e Antuérpia. Depois, Alderweireld transformou a tarde num conto de fadas.

O relógio marcava 93.33 minutos quando o filho da terra regressado a casa encheu o pé para marcar um grande golo, o golo que valeu o empate frente ao Genk e o título. 2-2, o Antuérpia era campeão 66 anos depois.

A juntar ao campeonato, o Antuérpia conquistou também a Taça da Bélgica. Uma dobradinha a anunciar que o Great Old estava definitivamente de volta.

Esta temporada começou com o Antuérpia a vencer a Supertaça da Bélgica e a apurar-se pela primeira vez na história para a fase de grupos da Liga dos Campeões, batendo no play-off o AEK Atenas. A partir daí, os resultados têm sido mais irregulares, tanto a nível doméstico como europeu. Tem apenas uma vitória nos últimos sete jogos e na Liga dos Campeões ainda procura somar o primeiro ponto, depois das duas derrotas inaugurais – começou com a goleada sofrida em Montjuic, frente ao Barcelona (5-0), antes da incrível receção ao Shakhtar, quando esteve a vencer por 2-0 mas não evitou a reviravolta ucraniana, com requintes de crueldade. Inclusivamente um penálti desperdiçado por Alderweireld, o herói do título.