A atenção está garantida quando se juntam nomes como Lionel Messi ou Karim Benzema e antes deles Cristiano Ronaldo. Ou Di María no processo de regresso ao Benfica e agora também Mbappé a alimentar a hipótese de ser um jogador livre daqui por um ano. Mas eles são apenas o topo da pirâmide, num universo particularmente significativo, lá fora e também em Portugal, de jogadores de elite que no final desta época ficaram com o passe na mão, livres para negociar com qualquer clube. Na maioria veteranos, mas não só. Fomos tentar perceber se essa é uma tendência crescente. Certo é que há um enorme apelo e um enorme foco nos jogadores e nas suas condições contratuais influenciado pelo furacão que está a varrer o mercado internacional, os milhões da Arábia Saudita.

A cada janela de mercado, milhares de jogadores profissionais ficam livres. Não se trata apenas de jogadores de topo. A grande maioria das transferências envolve futebolistas em fim de contrato, uma constatação que os dados da FIFA relativos a transferências internacionais ajudam a contextualizar. Esse valor tem aumentado a cada ano em absoluto, com algumas variações percentuais. Em 2022, dois terços de todas as transferências envolveram jogadores que não tinham vínculo a um clube – 13.187 para um total de 20.209, 65.25 por cento. É assim há anos. Em 2021 foram 66.8 por cento, números superiores a 2019, o ano anterior à pandemia, com 64.3 por cento.

Este valor engloba maioritariamente jogadores cujos contratos expiraram (41 por cento), mas também cessações de vínculo por mútuo acordo (34.6 por cento), como os recentes casos de Cristiano Ronaldo ou Benzema. Há ainda uma componente significativa de jogadores que estavam registados como amadores (20.3) e em menor percentagem casos de rescisão unilateral.

As transferências de jogadores livres ano a ano

Fonte: Relatório Global de Transferências 2022 da FIFA

O conceito de jogador livre no futebol é relativamente recente. Foi o acórdão Bosman a generalizá-lo, em nome do princípio da livre circulação. A sentença que avaliou precisamente a queixa de um jogador por se ver impedido de mudar para outro país, apesar de o vínculo com o anterior clube ter expirado, teve consequências profundas e levou a mudanças que estão instituídas nos regulamentos de transferências da FIFA desde 2001.

Como mudou o perfil dos jogadores

Muito mudou no futebol, desde logo também a consciencialização dos jogadores. Como nota Carlos Freitas, que tem longa experiência no meio, como diretor desportivo em vários clubes em Portugal e no estrangeiro. «O jogador hoje em dia é um profissional bem preparado. Aquela ideia do jogador intelectualmente desprovido de conteúdo já não existe. E então vai obviamente gerindo a sua carreira, juntamente com as pessoas junto das quais se aconselha para tomar as melhores decisões, muitas vezes a dois, três anos do fim do contrato. Há jogadores que se têm um contrato de cinco anos a meio já estão a pensar no passo seguinte», observa Carlos Freitas ao Maisfutebol. «Hoje temos muitos jogadores que têm um autêntico séquito em torno deles, em termos de aconselhamento jurídico, financeiro, de imagem…»

Assistimos nesta temporada a vários casos de jogadores de topo em fim de contrato, também na Liga, com desfechos diferentes. Se o benfiquista Grimaldo e o portista Uribe acabaram mesmo por sair, Otamendi renovou com o Benfica e Marcano com o FC Porto, tal como, por exemplo, Luís Neto com o Sporting.

Muitos caminhos para o casamento ou divórcio entre jogador e clube

Numa relação contratual e numa negociação para o futuro há inúmeros factores em cima da mesa, do lado de jogadores e clubes. Com maior poder negocial, naturalmente, por parte de um jogador com a cotação em alta. «Há jogadores que mudam de país ou de clube não só pela parte financeira, muitas vezes nem é isso que está em causa, mas também pelo teste noutro campeonato, com um grau de exigência maior. Mas quando um jogador tem um trajeto que suscite interesse em mercados diferentes em que possa melhorar a sua situação obviamente que tenta levar as suas intenções até ao fim», nota Carlos Freitas.

Há também muitas razões para o processo terminar sem acordo, prossegue: «Muitas vezes as situações deterioram-se, as relações também, e por vezes acaba por redundar numa separação. Muitas vezes não é por inércia que os clubes veem os jogadores chegar ao fim do contrato, tem mesmo a ver com incapacidade para acompanhar ou propostas efetivas, ou sondagens, ou desejos, porque muitas vezes também tudo aquilo que os jogadores esperam e lhes chega aos ouvidos não é realizável.»

Nem sempre os jogadores que assumem uma renovação têm já novo clube na mira, acrescenta: «Muitas vezes não têm o futuro completamente definido. Não existem só os casos onde já está feito há um ano ou dois, também há quem jogue no risco.»

Começámos por falar de jogadores que estão em boa posição para negociar, mas muitas vezes isso não acontece. Como nota Fernando Meira, antigo internacional português e agora agente de jogadores. «Por vezes terminar contrato acaba por ser um problema para o jogador e para o colocar, se está em baixa, se não joga, se está lesionado», observa Meira ao Maisfutebol, falando também, do ponto de vista do agente, das dificuldades em gerir expectativas: «Normalmente a expectativa do jogador é: se ganho 10 quero ganhar 20, se estou no Paços de Ferreira quero ir para o FC Porto, se estou no FC Porto quero ir para o Barcelona. Não é fácil gerir por vezes expectativas de alguns jogadores, penso que isso é generalizado.»

A tendência que se desenha em Portugal

Focando-se no panorama nacional, Fernando Meira começa por notar que é relativamente corrente haver um número considerável de jogadores que ficam livres no final de uma época. «Em alguns clubes, principalmente de II Liga e alguns de I Liga quando descem, há jogadores que têm cláusulas que lhes permite ficarem livres. Por vezes não é questão só do jogador querer ter o seu passe na mão, tem a ver com alguns clubes não terem grande disponibilidade quer financeira quer desportiva.»

O antigo defesa considera de resto que, no mercado português, há agora tendencialmente mais jogadores que ficam livres. Por causa do número crescente de futebolistas com contratos profissionais em cada clube, diz: «Hoje há a tendência de existirem mais jogadores livres. Há 15, 20 anos, não tínhamos equipas B, não tínhamos equipas sub-23. Hoje, qualquer clube em vez de ter 30 jogadores com contrato profissional tem 90 ou 100. Isto a nível de mercado aumenta mais a oferta. Uns têm mais valor e outros têm menos, mas é muito mais normal hoje termos muita malta disponível no mercado. Os jogadores terminam os contratos de forma mais assídua.»

Um dado a que podemos associar aquilo a que se assistiu esta época, nomeadamente no Benfica, que viu sair em fim de contrato vários jovens que fizeram parte da equipa campeã da Youth League no ano passado, como Cher Ndour, Diego Moreira, Luís Semedo ou Diego Moreira. Sem querer comentar a situação do Benfica em concreto, Carlos Freitas volta à questão das expectativas e da sua gestão: «Não quero emitir juízos sobre uma matéria sobre a qual não tenho dados. Mas muitas vezes queremos ter este mundo e o outro muito rapidamente. Há que evoluir gradualmente quer em termos desportivos quer em termos financeiros. Houve quem acenasse com outro tipo de propostas. Quem tem de decidir tem de optar, optou como optou.»

Um jogador livre é mais interessante para quem contrata?

Importa perceber também se ter o passe na mão pode dar ao jogador outra margem negocial. Depende, diz Fernando Meira: «Não podemos generalizar. Resumindo, ou o jogador termina o contrato numa grande fase e tem de facto um poder negocial muito grande, ou então está numa situação mais fragilizada e tem de se limitar àquilo que o mercado oferece.»

Do ponto de vista de quem contrata, um jogador livre pode ser mais interessante. Mas, lá está, depende do estatuto do jogador. Carlos Freitas dá um exemplo, de uma negociação ao mais alto nível: «Aqui há uns anos, o facto de o Pogba estar livre não significou que ele tivesse um prémio de assinatura inferior a um valor de transferência. Não vou dizer da mesma dimensão.»

«É uma questão de escolha e também do jogador. O clube pode entender direcionar o montante que tem disponível ou para um clube a quem vai contratar um jogador, ou ao próprio jogador, a quem dá um prémio de assinatura. Mais o agente, e atualmente também há a figura da família, do pai, ou do tio, ou do primo», continua Carlos Freitas: «Há jogadores que pelo facto de estarem livres, apesar de ter de se lhes dar um enorme prémio de assinatura podem também ser um ótimo investimento, se trouxerem um apport de visibilidade, comercial, de gente no estádio.»

Artur Fernandes, empresário e presidente da Associação Nacional de Agentes de Futebol, deixa também a sua opinião, defendendo por outro lado que não há necessariamente uma diferença substancial na negociação tratando-se de um jogador livre. «O valor de um jogador está mais ou menos estipulado quer ele seja livre ou não. É obvio que pode às vezes ter um prémio de assinatura de contrato, mas de uma maneira geral é standardizado. Os clubes em termos salariais não fogem muito daquilo que são os seus parâmetros e tentam levar isso à risca.»

«O agente só pode ir buscar três ou quatro por cento»

Para os agentes, diz Artur Fernandes, as novas regulamentações da FIFA até tornaram aliás menos atrativo negociar um jogador livre. «Se analisarmos a nova legislação da FIFA, compensam muito mais as transferências de jogadores com contrato, porque jogadores livres têm limitações muito maiores em termos de comissões e transferências. Normalmente as pessoas gostam de associar esses negócios de jogadores livres aos empresários, mas é uma falácia. Para um jogador dito livre, os parâmetros da FIFA são muito limitativos. O agente só pode ir buscar três ou quatro por cento daquilo que são os salários do jogador. Enquanto numa transferência pode ir buscar um bocadinho mais.»

Artur Fernandes considera de resto que a proporção de jogadores livres se mantém estável, dentro da tendência de se limitar sobretudo a atletas mais veteranos. «É uma tendência que já vem de há muito tempo em relação aos jogadores mais velhos, uma opção por uma questão de segurança das duas partes. Os clubes não querem assinar por muitos anos com jogadores mais velhos, por uma questão de rentabilidade, por outro lado os jogadores mais velhos também têm sempre a esperança de que possam fazer um contrato melhor. Além de que, face às próprias leis internacionais, acabam por ficar livres mais facilmente. Quanto aos jogadores jovens e bons, a maior parte, 99 por cento, têm contrato.»

«Os jogadores a partir de uma determinada idade, nomeadamente pela lei a partir dos 28 anos, têm mais facilidade em ficar livres e, como podem estar perante o último contrato, ou um dos últimos, tentam apostar no máximo para si, na maior parte dos caso não tanto desportivamente mas financeiramente», continua Artur Fernandes, acrescentando que é aqui que entra o apelo de novos mercados: «Temos os mercado emergentes. Aqui há uns anos era o Japão, a Rússia e a China, agora é a Arábia Saudita. Daqui a uns anos será a Índia ou outro qualquer.»

O apelo dos milhões sauditas, «fora de qualquer limite conhecido»

Esse é o factor que influencia fortemente o atual contexto do mercado, nota por sua vez Carlos Freitas. Que não vê, genericamente, uma tendência de aumento de jogadores que optam por ficar com o passe na mão, mas não tem dúvidas de que a Arábia Saudita introduziu um factor de peso no mercado e na perceção dos jogadores. «Agora há o efeito Arábia Saudita, como aqui há uns anos houve o efeito China, por exemplo. Obviamente nesta altura todos os jogadores, sobretudo de uma determinada idade, estão à espera de uma oferta de outro país. As realidades económicas fortes têm um appeal que leva a que muitos jogadores tentem chegar a uma situação contratual que seja apetecível para esse tipo de campeonatos.»

«Ainda não é, acho eu, possível ver qual será o impacto real em termos de duração do efeito Arábia», prossegue Carlos Freitas. «Na dimensão dos montantes, penso que não tem nada a ver o que aconteceu na China com o que está a acontecer na Arábia, de tal forma são desmesurados os montantes de que se fala. Está-se a falar de ofertas de 20 milhões, 30 milhões, 100 milhões por ano com uma naturalidade que era impossível imaginar. Acho que estamos fora de qualquer limite conhecido. Embora eu continue a achar que a esmagadora maioria dos jogadores se consagra no futebol europeu, com a Liga dos Campeões, com as competições europeias, com a dimensão dos próprios clubes. Acho que é impossível a Arábia afirmar-se como grande futebol enquanto não tiver jogadores locais de uma certa dimensão.»

Perante essa dimensão financeira «fora dos limites conhecidos», Carlos Freitas diz que acompanha «com curiosidade» a forma como a Arábia Saudita está a conseguir aliciar jogadores de topo ainda longe do fim da carreira. O caso mais recente é o de Milinkovic-Savic, que assinou pelo Al Hilal de Jorge Jesus. E há também Bernardo Silva, com notícias recorrentes de valores astronómicos oferecidos ao internacional português.

Uma «discussão saudável» sobre Bernardo Silva

Fernando Meira foi campeão alemão no Estugarda, passou várias épocas no Zenit e terminou a carreira no Saragoça, uma decisão que teve precisamente a ver com um objetivo de carreira, diz: «A Liga espanhola sempre me fascinou. Com 33 anos era a altura de regressar para uma Liga em que eu sempre quis jogar, além de estar também mais perto de casa.» Mas reconhece que os valores que a Arábia Saudita está a introduzir no mercado mexem com qualquer jogador. «Claro que ninguém fica indiferente a estes números. São números completamente anormais para aquilo que é o mercado europeu. Jogar na China ou na Arábia, logicamente têm de ser números interessantes e que motivem a ir para lá, porque ninguém vai para o campeonato da Arábia ou da China com o interesse da Liga em si, mas pela vertente económica, que se torna ainda mais importante no final da carreira», diz.

Por isso, compreende uma eventual opção de Bernardo Silva pelo futebol saudita. «Recentemente tive uma discussão saudável com um amigo que dizia que era um grande admirador do Bernardo Silva e ia deixar de ser porque fala-se na possibilidade de ele ir para a Arábia», conta Meira: «Eu acho que o Bernardo já demonstrou a nível de seleção nacional que é um grande jogador, foi quatro ou cinco vezes campeão da Liga inglesa, venceu agora a Liga dos Campeões e a nível desportivo acho que é um jogador realizado. Logicamente que quando se fala de 80 ou 90 milhões por ano isso pesa e muito, para um jogador que já está desportivamente realizado.» Além disso, acrescenta, uma mudança agora não implica necessariamente que um jogador como Bernardo Silva não possa voltar ao futebol europeu: «Um jogador que esteja numa Liga árabe, que já é mais que notório que vai ser uma Liga competitiva, e que saia com 29 ou 30 anos está completamente em condições de integrar qualquer equipa de topo da Europa, porque continua a ter as suas características intocáveis.»

Do controlo na Europa à falta dele «onde o dinheiro sai do chão»

Artur Fernandes não acredita que o apelo dos milhões sauditas leve os jogadores a procurarem tendencialmente ficar com o passe na mão, para agarrarem mais facilmente uma oportunidade como essa. Porque do lado saudita é indiferente negociar com um jogador ou um clube, defende: «Para quem tem o dinheiro que têm os árabes, desde que o nome seja aliciante para eles, pagar 4 mil ou 4 milhões ou 40 milhões é igual.»

A questão de o jogador estar ou não livre é mais relevante, acrescenta Artur Fernandes, no futebol europeu. «Na Europa, onde é mais difícil a transferência de um jogador, onde o controlo é muito maior e as dificuldades dos clubes também, aí sim, faz sentido os jogadores livres. Ainda agora o Frankfurt assinou um jogador fantástico livre que é o Ellyes Skhiri, internacional pela Tunísia», observa. «Agora, nesses mercados emergentes cheios de dinheiro é igual. Aquilo sai-lhes do chão, é relativamente fácil. E não há controlo financeiro. A menos que tentem ir lá controlá-los, mas eu não acredito que ninguém os vá controlar. Como não controlaram os chineses durante muitos anos.»

Como o futebol português é vulnerável

O apelo dos mercados emergentes é particularmente forte para uma realidade como a do futebol português, nota Carlos Freitas. «Portugal está no segundo ou terceiro mercado europeu. Tem a dimensão futebolística que tem, a dimensão económica que tem, os direitos televisivos que tem. Um jogador muito bem pago em Portugal ganha no máximo entre 3 e 3.5 milhões e meio limpos por ano», observa. «Uma oferta deste tipo encontra paralelo em clubes das top 5, digamos assim. Embora eu ache que não é só a dimensão económica que leva os jogadores a quererem sair, estamos a falar de dimensões completamente diferentes, quando por exemplo um clube médio/alto em Itália pode ter 60 milhões de euros de direitos televisivos ou um clube do fundo da tabela em Inglaterra recebe o que recebe. Portanto acaba por ser natural que os jogadores queiram melhorar a sua vida. Como se sabe, não é uma carreira que possa durar mais do que 12, 13 anos ao mais alto nível.»

A terminar, Carlos Freitas reflete sobre alguns caminhos para os clubes portugueses contornarem esse fosso e um deles passa pela gestão do tal lote alargado de jogadores sob contrato. «Pode passar não só por uma aposta cada vez mais forte em termos de formação, mas também por uma maior dispersão dos montantes disponíveis por outro tipo de ativo», diz: «Ou seja, ter mais contratos, mas dentro do mesmo valor que se tem disponível. Aumenta-se o número de ativos e a capacidade de dispersar o investimento, sem ficar num garrote em que se se perder determinado ativo há um impacto enorme em termos desportivos e financeiros.»