O futebol resiste a tudo; até a uma guerra civil fratricida. Esta terça-feira, a Síria volta a entrar em campo para disputar as eliminatórias de apuramento para o Campeonato do Mundo de 2018. Oficialmente, joga em casa, mas na prática os seus apoiantes ficarão a mais de 7 500 quilómetros de distância.

Recebe (às 12:30, hora portuguesa) o Irão, comandado por Carlos Queiroz, líder do Grupo A da segunda fase da qualificação asiática (10 pontos em quatro jogos, contra quatro pontos dos sírios, no 4.º lugar), no estádio Tuanku Abdul Rahman, nos arredores de Kuala Lumpur, capital da Malásia. Damasco, a capital da Síria, fica quase no outro extremo do continente.

Apesar de a competição interna continuar a desenrolar-se na franja ocidental do país, por motivos de segurança, a FIFA não autoriza jogos da seleção na Síria devido à guerra civil que eclodiu em 2011 e que já provocou 470 mil mortos e 4,8 milhões de refugiados.

Seleção, da tolerância à dissidência

Os efeitos da guerra têm sido devastadores. Ainda assim, o futebol resiste, apesar das vicissitudes de um conflito armado com várias fações envolvidas, como explica ao Maisfutebol Rui Almeida, técnico português que entre 2010 e 2012 orientou a seleção olímpica.

Seleção olímpica treinada por Rui Almeida

«A Síria era um país particularmente tolerante, até para com os cristãos – que representavam cerca de 10 por cento da população. Lembro-me por exemplo que no meu tempo fizemos uma observação mais alargada e detetámos um bom avançado, que era cristão. Coloquei a possibilidade de o convocar à federação e ao ministro dos Desportos, que não colocaram qualquer entrave, e ele integrou-se muito bem no grupo. No entanto, com o avançar do conflito, começaram as divisões. Alguns dos melhores jogadores renunciaram à seleção por serem opositores do regime de Assad. Foi o caso de Omar Al-Somah, que joga no Al-Ahli de Jeddah (ex-clube do técnico Vítor Pereira) e que foi duas vezes melhor marcador do campeonato da Arábia Saudita. Não sei se renunciaram por convicção ou por temerem represálias de grupos armados sunitas opositores a Assad, que passaram a ver a seleção não como representante do país mas do regime. Na verdade, lembro-me de um episódio em que treinávamos no estádio nacional Abbasiyyin e ao lado, na pista, havia muita gente, montes de tecido e máquinas numa ação de propaganda ao regime: estavam a fazer bandeiras da Síria gigantes num sinal de apoio a Assad», recorda o técnico português, que hoje treina os franceses do Red Star, da Ligue 2.

Há casos mais ainda mais significativos do que a dissidência de Al-Somah e outros craques da seleção. Por exemplo, Baset Al-Sarout, jovem guarda-redes que representou a seleção de sub-17 e sub-20, que abandonou o futebol para liderar uma facção rebelde na cidade de Homs no início da guerra civil. Numa entrevista no início deste ano a um jornal turco, Al-Sarout, cujo paradeiro era desconhecido, revelava a sua renúncia ao conflito armado e mostrava a vontade de regressar ao futebol.

Pior sorte teve Youssef Suleiman, jovem avançado de 19 anos do Al Wathba, também da cidade de Homs, que em fevereiro de 2013 foi vitimado mortalmente pela explosão de dois morteiros num hotel em Damasco. Por sua vez, quatro futebolistas do Al-Shabab de Raqqa, capital do autoproclamado Estado Islâmico, foram acusados de espionagem e decapitados em julho deste ano. Em outubro último, a vítima foi Jehad Kassab, 40 anos, ex-jogador quatro vezes campeão sírio pelo Al-Karamah, preso em 2014 com a acusação de instigar tumultos. Apesar de estar numa lista de troca de prisioneiros com o regime, acabou por ser torturado até a morte.

Rui Almeida tem bem presente a escalada de violência na Síria, apesar de quando deixou a seleção, em abril de 2012, não ter vivido de perto um cenário de guerra latente, porque as frentes de combate estavam fora da capital.

Rui Almeida, ex-selecionador olímpico da Síria

«Vivi uma fase mais silenciosa da guerra, em que a vida em Damasco corria normalmente. Às sextas, durante as orações, passou a haver um silêncio anormal na vida da cidade. Depois, os jogadores passaram a chegar atrasados às concentrações porque passou a haver patrulhas do exército a controlarem as estradas. Mas todos os jogadores continuavam a querer vir para a seleção. Até que houve uma altura em que deixámos de nos concentrar em Damasco, já por motivos de segurança», prossegue o técnico português, detalhando em seguida: «Por vezes, viajávamos até ao Líbano para apanhar o avião em Beirute. Mas, a partir de determinado momento, passou a ser impossível fazer essa ligação de pouco mais de 200 quilómetros de autocarro devido ao risco de atentados. Que eu tenha conhecimento, até hoje, nenhum dos jogadores dessa seleção olímpica morreu na sequência do conflito, mas alguns dos seus familiares morreram e muitos abandonaram o país. Entretanto, já depois de eu ter saído, a sede da federação de futebol, em Damasco, que era o meu local de trabalho, foi atingida por um atentado.»

Futebol em tempo de guerra

Atualmente, a guerra civil na Síria coloca várias fações em conflito e envolve no tabuleiro político a comunidade internacional.

No ocidente do país, zona afeta ao regime de Assad, que tem na Rússia e no Irão os seus principais aliados, o campeonato interno continua a disputar-se em dois grupos divididos entre a capital Damasco e a cidade costeira de Latakia. O Al-Jaish, clube do exército, e o Al-Shurta, da polícia, ganharam preponderância na competição e são os principais representantes nas competições asiáticas.

Público a assistir a um jogo de futebol em Maarrat al-Nu'man, zona controlada pela oposição a Assad

Fora desta faixa mais próxima do Mediterrâneo, que corresponde a uma pequena parte do território, não há condições mínimas de segurança. Aleppo, outrora mais populosa cidade do país com mais de dois milhões de habitantes está completamente destruída e é disputada bairro a bairro entre o exército sírio, fiel a Assad, e forças da oposição, em particular radicais sunitas, como a Frente Al-Nusra. No centro do país, forças apoiadas pelo exército turco, por um lado, e guerrilheiros peshmerga e outras forças curdas, por outro, vão ganhando terreno e encurralando o Estado Islâmico.  

Hoje, curiosamente, o confronto no terreno de jogo é contra um aliado no campo de batalha. O Irão, de maioria xiita, é apoiante regime do primeiro-ministro Bashar al-Assad, alauita, grupo étnico-religioso decorrente do xiismo, que controla o estado sírio, apesar de representar apenas 15 por cento da população – tem oposição da corrente sunita, que tem a Arábia Saudita como grande potência regional.

Crianças sírias jogam futebol em campo de refugiados na Jordânia

Rui Almeida prefere falar de futebol e observa uma foto do dia publicada no jornal Le Parisien para comentar com o Maisfutebol: «É curioso ligarem-me hoje. Ainda há pouco estava a olhar para a foto dos onze jogadores que se perfilam na seleção principal e cinco deles trabalharam comigo nos sub-23. São jovens de grande qualidade e a prova disso mesmo é que, apesar das adversidades, a seleção continua a lutar pelo apuramento.»

O povo sírio «tem uma enorme paixão pelo futebol» e merecerá esse compromisso, defende Rui Almeida. Ter um campeonato reduzido a duas cidades ou ver a seleção a jogar a 7 500 quilómetros de distância de casa são adversidades menores. Pior seria se a guerra matasse em definitivo o futebol, uma das derradeiras armas da esperança.