Quem olha para Rigobert Song não pode deixar de notar que há algo de relevante na cabeça do selecionador dos Camarões: na circunstância um chapéu. Mas nunca é um chapéu normal, são exemplares únicos, que exibem referências inspiradoras.

Podiam ser frases do Facebook, mas não: são partes de uma teoria que o próprio Song criou.

Nesta altura convém dizer que tudo começou a 29 de março. Antes do play-off de apuramento para o Mundial 2022, frente à Argélia, o selecionador deixou uma frase que fez história.

«Quando sabes que estás em perigo, tu deixas de estar em perigo. É quando tu não sabes que estás em perigo, que aí sim estás em perigo. É assim que funciona», referiu Song.

A teoria do recém-criado filósofo teve de imediato um enorme impacto. Tornou-se um conceito célebre, espalhou-se nos órgãos de imprensa e nas redes sociais. Ganhou asas e voou.

Foi até remisturada numa música, foi utilizada em vários eventos, foi repetida por várias pessoas e o criador sentiu que a criação lhe estava a fugir entre os dedos.

Por isso, e com o sentido prático que sempre o caracterizou, Rigobert Song recorreu aos advogados para registar a autoria. Fê-lo na Organização Africana da Propriedade Intelectual (Oapi) e na Sociedade Civil dos Direitos da Literatura e das Artes Dramáticas.

A partir daí a frase passou a ter marca registada: tornou-se a teoria de um filósofo apenas.

Já legítima e legalmente proprietário absoluto da frase, Rigobert Song resolveu rentabilizar o investimento. E como? Nos chapéus, que ele sempre utilizou em ocasiões públicas. Ora se haveria de divulgar ideias dos outros, mais valia divulgar as dele: criou vários exemplares com diferentes frases da mesma teoria, que tem exibido orgulhosamente no Qatar.

A ideologia de Song, em forma de doutrina de vida, elevou o nome do camaronês ao pedestal dos pensadores. Sempre que alguém repete a frase, aliás, Song solta uma sincera gargalhada.

Afinal de contas, para quem não teve tempo para estudar, refletir assim chega a ser divertido.

O trajeto de Rigobert Song, aliás, chega a ser impressionante. Nascido na pequena localidade de Nkenglikok, no centro dos Camarões, viajou muito novo para Otélé. O pai morreu quando ele tinha nove anos, Song era filho único e ficou sozinho com a mãe.

Foi nessa altura que a família paterna mandou que voltassem de Otélé, para ir morar na casa de um irmão do pai, em Essos, nos subúrbios da capital Yaoundé.

«O apelido de Bahanag que eu trago hoje no meu nome pertence ao irmão mais velho do meu pai, que é o pai do Alex Song. Fui viver para casa dele com nove anos, eu e a minha mãe partilhávamos um quarto, ela dormia num colchão e eu na terra. Nessa altura fui estudar para a escola primária local e apaixonei-me pelo futebol», contou Song.

«Foi a jogar na escola que acabei por ser selecionado para fazer parte da equipa da região centro, que participava num torneio de províncias em Douala. Fizemos dois estágios, para diminuir o grupo, e o meu nome estava na lista de jogadores expulsos. Então fui ter com os treinadores e chorei, chorei, chorei. Criei um mar de lágrimas, pedi que me dessem mais uma hipótese, não comi durante esse dia e eles acabaram por me dar mais uma oportunidade.»

Song diz que o futebol era a única hipótese de ajudar a mãe e que a partir desse momento tornou-se um militar: rigoroso, esforçado, pontual. Cresceu rapidamente e tornou-se um líder.

A determinação era tão grande que foi nomeado o capitão dessa equipa.

Quando o torneio acabou, regressou a casa e decidiu deixar a escola. A verdade, porém, é que não encontrou um clube. Foi então que percebeu que ia ser difícil conseguir jogar nas grandes cidades, em Yaoundé ou em Douala, onde milhares de miúdos procuravam uma oportunidade.

A solução era fugir à mãe e procurar um clube na parte ocidental do país. Quando tinha 13 anos, achou que estava na altura de arriscar.

«Um dia às quatro da manhã, enquanto a minha mãe dormia, fugi de casa pela janela do quarto e fui para Bafoussam. Quando cheguei era um estrangeiro na cidade. Não tinha ninguém. Tornei-me um sem-abrigo. Dormi uma semana na rua, em cima de um cartão. A minha família não sabia de mim e deu-me como perdido», revela.

«Não tinha onde dormir, não tinha o que comer e então comecei a fazer pequenos assaltos no mercado, roubava para viver, para ter alguma coisa que trincar. Vivi assim durante uma semana ou dez dias. Mas eu sempre tive fé, sempre fui à igreja aos domingos e a graça de Deus ajudou-me. Um dia estava deitado no meu cartão e vi passar uma pessoa com umas chuteiras na mão. Comecei a segui-lo.  Ele ia para um treino. Era uma equipa que treinava de manhã, antes de irem para escola, para o trabalho, o que fosse. Eu fiquei do lado de fora, a vê-los, e ia buscar as bolas que eles chutavam para longe. Quando acabou o treino, iam fazer um jogo de onze contra onze e faltava um jogador. Foi então que me chamaram para completar uma equipa.»

O clube chamava-se Red Star Bangou e foi o primeiro da carreira de Rigobert Song.

Antes disso, porém, é preciso dizer que tudo começou com um jogo de final de treino. O jovem bateu-se com jogadores adultos como um guerreiro e foi convidado a regressar no dia seguinte.

«No final desse segundo dia o treinador, que era um professor de educação física, chamou-me de lado e perguntou-me de onde era. Respondi que era de Yaoundé. A seguir perguntou-me o que fazia ali e eu disse-lhe que queria ser jogador de futebol. Depois perguntou-me onde vivia. ‘Não tenho casa, durmo na rua’», contou o atual selecionador camaronês.

«Esse treinador levou-me para casa dele, apresentou-me à mulher, aos filhos e disse-lhes que a partir daquele dia eu ia viver lá com eles.»

Para agradecer o gesto, Song ia fazendo pequenos serviços em casa, sem que ninguém lhe tivesse pedido nada: regava as árvores do jardim, apanhava a fruta, enfim. Enquanto isso, treinava com a equipa principal, que disputava a segunda divisão dos Camarões: diz que aplicou toda a determinação, todo o compromisso, toda a fome em cada bola.

Quando o campeonato começou, treinava e jogava pelos juvenis, mas ainda fazia todos os dias trabalho suplementar com os seniores. Com o dinheiro do primeiro ordenado foi comprar umas chuteiras. Rapidamente se tornou capitão e foi capitão em todas as equipas que representou.

«Era capitão por ser o melhor jogador? Não. Por ser o mais bonito? Também não. Eu só tinha uma coisa de excecional: a minha determinação. Os treinadores reconheciam isso.»

Foi daí que lhe veio a alcunha de «Capitão coragem», que o acompanha até hoje.

Em 1992, quando tinha 15 anos, foi contratado pelo Tonnerre Yaoundé, onde conheceu o profissionalismo. Começou por jogar na equipa de juniores, em 1993 foi integrado no plantel principal e no final dessa época foi convocado para um estágio da seleção camaronesa em Clairefontaine. Uns meses depois estava a fazer parte da equipa que disputou o Mundial 94.

«Quando cheguei à seleção, tive de carregar as malas de toda a gente e estava todo contente. Estava ali com as estrelas que quatro anos nos tinham feito sonhar no Mundial 90, em Itália, que eu tinha visto numa televisão a preto e branco, e que até tinha ido esperar ao aeroporto. Para mim aquilo era um sonho, nem estava a acreditar», revelou.

«Pensei que tinha de aproveitar e aprender o máximo com eles. Mas um dia, antes do primeiro jogo, com a Suécia, o Henri Michel chamou-me e disse: ‘Prepara-te, que vais jogar’. Saí do quarto e deitei as mãos à cabeça. Fui ter com os outros jogadores ao restaurante e não consegui comer. Pus tão pouca comida no prato que eles pensaram que eu estava doente.»

Song foi para o quarto, pensou em tudo o que tinha passado e preparou-se psicologicamente. Tinha 17 anos e refletiu que aquela confiança do selecionador tinha de significar alguma coisa.

A partir daí a história é conhecida. Foi titular nos Estados Unidos e jogou quatro Mundiais, representou clubes como o Metz, o Liverpool, o West Ham, o Lens e o Galatasaray, representou a seleção 137 vezes e ainda hoje é o jogador mais internacional da história dos Camarões.

Toda a gente se recorda de Song como um central duro e implacável, com uma mentalidade combativa e ganhadora. Um jogador vigoroso e autoritário. Ainda hoje detém o recorde de jogador mais jovem expulso num Mundial, precisamente ao segundo jogos nos Estados Unidos.

Criou a filosofia «Hemlé», que num dialeto do país significa «paz» e que o acompanha há décadas. Pode traduzir-se por uma mentalidade vencedora, em que a garra e a determinação são a mola impulsora de todo o comportamento, no caminho para o sucesso.

É essa filosofia que o fez conquistar o sucesso sem nunca ter sido o melhor jogador e que agora permitiu à seleção dos Camarões fazer um milagre para estar no Qatar: nomeado selecionador pelo amigo Samuel Eto’o em fevereiro, disputou o play-off frente à muito favorita Argélia e conseguiu o apuramento ao fazer o golo da vitória no terreno adversário aos 120 minutos.

«Na vida um vencedor é aquele que, apesar das dificuldades, consegue levantar-se e viver os seus sonhos. Passei por muitos sacrifícios, mas segui sempre em frente e lutei pelo que sonhava. Há um Espírito Lutador que reside dentro de mim.»

Provavelmente foi esse Espírito Lutador que alinhou os astros para que tivesse sobrevivido a um derrame cerebral por milagre: em dezembro de 2016, altura em que passou vários dias em coma.

«Senti-me mal, caí de lado e por sorte não engoli a língua. Tinha deixado a porta aberta porque estava à espera de uma visita. Se a tivesse deixado fechada, teria morrido. O cão começou a ladrar muito alto, o meu senhorio apercebeu-se e chamou uma ambulância. Foi um milagre. Se não fosse o meu cão, nem sei.. Continuo vivo graças a ele.»

Sim, o menino que viveu na rua e teve de roubar para comer tornou-se um pensador: um homem que desenvolve filosofias de vida e cria teorias para o sucesso.

Há vários chapéus que estão aí para o lembrar.