Se o saudoso José Torres tivesse dito a icónica tirada do «Deixem-me sonhar» nos dias de hoje, alguém haveria de responder: «Não dá, mister».

A verdade é que o futebol moderno deixou muito pouco espaço para sonhos.Se dúvidas houvesse, o banho de realidade que levou o FC Porto em Munique é a prova viva. Uma semana a fazer contas, traçar planos, perspetivas, projetos. A pensar em táticas, a apelar à crença. Uma semana a programar o futuro e 45 minutos a levar com o presente a toda a força, de frente, qual camião desgovernado.

O atropelo que aconteceu ao FC Porto nem é, sequer, notícia. É a realidade, mais golo, menos golo.

No futebol de hoje não chega correr mais que eles. Não basta raça. É verdade que, ainda usando o exemplo portista, não houve nada disso em Munique. Mas, do outro lado, também faltou algo importante: apelo e agravo. Sem eles o FC Porto caiu. Porque mesmo que tivesse havido outra atitude, o que fazer quando o rival, em seis tentativas, faz cinco golos e coloca uma bola no poste?

A qualidade faz a diferença. Mais do que nunca. A qualidade custa caro. Mais do que nunca. O desnível na qualidade matou o sonho no futebol. Para sempre?

O caminho que trilha o futebol moderno é de crescente afunilamento. Basta ver a quantidade de vezes que, nos últimos anos, três das quatro vagas nas meias-finais da Champions foram preenchidas por Bayern Munique, Real Madrid e Barcelona, autênticas seleções all-star do futebol.

O que nos anos 80 e 90 era dia de festa, quando as seleções do resto do mundo defrontavam equipas locais, é o jogo a jogo de 2015. Temos os Oscars todas as semanas. O Woodstock de domingo a domingo.

A mim, confesso, cansa-me. Prefiro a democracia dos 80’s que não vivi. Um Estrela Vermelha de Belgrado, campeão europeu. Um Steaua de Bucareste, campeão europeu. Um PSV Eindhoven…campeão europeu, lá está.

Parece irreal, hoje, falar de um super-Aberdeen. De um Dínamo Kiev como a melhor equipa da Europa. Recordar que havia espaço para Honved, Rabat Ajax, Aarhus, Vitkovice entre os campeões.

«Aprendíamos geografia à conta do futebol», dizia-me, há dias, o Nuno Madureira. Hoje nem matemática, porque as contas são cada vez mais simples, nem filosofia, porque nem há espaço para questionar.

É o que é. E o que se pode fazer? Provavelmente apenas esperar. Porque a certeza que fica é uma: Martin Luther King só tinha um sonho, porque não era sobre futebol moderno.

«Cartão de memória» é um espaço de opinião/recordação, com pontes para a atualidade. Por vezes sério, por vezes leve. Como o futebol, no fundo. Pode questionar o autor através do Twitter.  

Leia todos os CARTÕES DE MEMÓRIA