A semana passada reencontrei um antigo colega com quem costumava jogar, já lá vão quase dez anos. Chegou ao grupo através do amigo de um amigo e foi ficando. Aparecia em cima da hora, equipado, cumprimentava toda a gente com sonoro «boa noite» e ia-se embora mal o jogo terminava, não trocando qualquer palavra para além do básico, nem permanecendo um minuto que fosse após o final da partida. Jogava bem, embora sem ser tecnicamente brilhante, daqueles que abrem sempre uma linha de passe, difíceis de marcar e de parar.

Certa noite (jogávamos às 22h), seguia ele isolado para a baliza depois de ter passado por mim em velocidade, estiquei o pé e derrubei-o, como se o seu corpo fosse papel e o meu a tesoura.

 — És estúpido, ou quê? — gritou, ainda em queda. — Quanto a ti não sei, mas eu amanhã trabalho.

Levantou-se em claras dificuldades e deixou o campo a coxear, ignorando as minhas preces e sentidos pedidos de desculpa.

Fiquei um pouco abalado, confesso. A revista onde trabalhava havia sido «descontinuada» e acabara de ficar desempregado. Concluí, ainda antes do final do jogo, que ele estava certo. Que jamais teria abordado o lance daquela forma caso tivesse emprego e dei por mim a enviar emails e currículos mal cheguei a casa. Passei, inclusive, a apelidar este tipo de faltas como a «falta do desempregado», o oposto dos «cortes à patrão», em que se rouba a bola sem cometer qualquer infração ou magoar o adversário.

O que mais me marcou foi, contudo, ele ter abandonado não só o campo, mas também ter desaparecido sem deixar rasto. Queria voltar a penitenciar-me, perceber se era grave, emprestar-lhe as minhas muletas, se preciso fosse, saber se teria faltado ao trabalho no dia seguinte, a verdade é que não só não sabia como se chamava, como ninguém tinha o seu número de telefone, uma morada ou a mais pequena ideia do que fazia na vida. A única biografia lhe conhecíamos fora escrita com os pés e esfumara-se à frente de todos nós.

Nos dias seguintes ainda dei algumas voltas à cabeça e à cidade, tentando recuperar um antigo talento, mas sem sucesso. Até aos meus dezasseis, dezoito anos, conhecia quase todas as profissões do mundo e achava-me capaz de adivinhar o emprego da maioria das pessoas com quem me cruzava, só pela cara, a roupa ou o tom de voz. Com o tempo, apercebi-me de que não é a profissão, nem sequer a carreira que nos define, e não só parei de perguntar ou adivinhar o que os outros faziam, como deixei de querer saber. Incluindo com os meus colegas de jogo. Sobretudo os meus colegas de jogo.

Se aparece alguém novo no grupo, o amigo de um amigo de um amigo, evito ao máximo informações pessoais. O nome basta. O campo está longe de ser território livre de preconceitos (talvez um dia escreva sobre isso), mas é, apesar de tudo, um território neutro, um dos raros espaços em que os títulos, as ferramentas e as medalhas do dia-a-dia perdem validade mal a bola começa a rolar. Ninguém entra em campo com as chaves do carro ou a planta da casa ao peito; ninguém diz «desmarque-se, senhor engenheiro», ou «que passe de merda, senhor doutor», muito menos alguém deixa de rematar à baliza com medo de ser despedido pelo colega ou pelo adversário, mesmo que este seja o pai, o irmão, o patrão ou o médico de família. Durante 60 minutos a bola é o centro do mundo. Arrisco mesmo dizer que alguns jogadores de fim-de-semana abdicariam de certos privilégios e conquistas nas suas vidas profissionais a troco de dois pés mais bem dotados ou horas extras de jogo, ainda que, perante a queda, aquilo que vem à cabeça seja o trabalho e o dia seguinte.

Reconheci-o de imediato, apesar da máscara. Cruzámo-nos num hospital em Lisboa, onde fui fazer uma ecografia de rotina, fruto de um tumor que, há meia dúzia de anos, me levou o testículo esquerdo, mas não o toque de bola. Imaginei-o, à data, como bancário ou agente de viagens — cheguei mesmo a entrar em vários balcões e agências de Lisboa à sua procura — mas jamais o vira como médico, não me perguntem porquê.

Tive receio, confesso. Por momentos cheguei a pensar fugir, tentei descortinar nos seus olhos e nos seus pés qualquer resquício da minha entrada, uma coxa, uma perna elástica ou uma possível sede de vingança, não sei ao certo, mas não vi nada. Bem pelo contrário. Foi de um profissionalismo exemplar. Pediu-me que baixasse as calças e perguntou-me se tinha dores. Disse-lhe que não. 

«Jogador de fim-de-semana» é uma crónica literária de João Ferreira Oliveira, que escreve todas as segundas-feiras no Maisfutebol. O autor opta pelo Acordo Ortográfico antigo.