Quarentena Futebol Clube
Plano de treinos – semana IV

Segunda-feira:
Análise de fotografias antigas:
Descompressão de memórias;

Terça-feira:
Consolidação do processo de defesa familiar:
- ataque posicional ao fogão, com envolvimento na realização da ementa do almoço;
- marcação em cima das rotinas do pai;
- defesa à zona do sofá para ganhar em antecipação na escolha do filme para o serão;

Quarta-feira:
Movimentos de basculação na organização da garagem;
Exploração do trabalho entrelinhas dos canteiros.

Quinta-feira:
Ataque em profundidade à Netflix;
Transições lentas e leituras paradas.

Sexta-feira:
Palestra.

Fim de semana livre.

Como se organiza uma vida há anos e anos ligada ao futebol quando ele fica parado e sem data para o regresso?

Essa é a pergunta. As respostas são várias.

Afastados do jogo e com saudades até das amarras em forma de picotado da zona técnica dos bancos, os treinadores de futebol que estavam desempregados na altura da paragem dos campeonatos deixaram de ter também os jogos que lhes davam material para análise.

No fundo, perderam aquilo que lhes permitia estarem minimamente ligados ao jogo e preparados para quando os seus serviços voltassem a ser requisitados.

Mas nem tudo se perde. Bem pelo contrário.

Pelo menos, foi com essa ideia que o Maisfutebol ficou ao conversar com três técnicos portugueses, que se viram com mais tempo para fazer coisas que antes adiavam. Ou que nem se lembravam que podiam e deviam fazer.

A programação semanal teve de ser adaptada aos tempos de pandemia, ainda que o futebol se mantenha sempre presente. Mas de formas bem distintas.

E com o tal tempo extra para as coisas que andaram demasiado tempo esquecidas.

A garagem de Domingos Paciência, por exemplo.

Confinado em casa há quase dois meses, o técnico de 51 anos conta, entre sorrisos, que ganhou uma garagem nova. Ou pelo menos é isso que parece.

«Aproveitei este tempo, por exemplo, para arrumar a garagem que estava muito desarrumada e a precisar de uma volta há algum tempo», confessa.  Ele que refere também ter dedicado algum tempo a arquivar coisas de outros tempos, como cartas em papel… essa preciosidade que parece agora peça de museu arqueológico.

Com a mobilidade desaconselhada, o técnico que passou por Académica, Sp. Braga ou Sporting, por exemplo, tem apostado bastante nas viagens… ao passado. Culpa - lá está - das arrumações.

«Às vezes quando mexo numa caixa e encontro fotografias antigas, fico parado a olhar. Porque cada foto tem uma história e às vezes perco muito tempo com isso. Encontro fotos de miúdo e isso traz-nos recordações boas», relata ainda sobre esta fase com mais tempo livre.

Por outro lado, o também antigo jogador lamenta que não possa fazer uma das coisas que o fazia desligar do mundo da bola.

«É uma pena que não se possa ainda ir a superfícies como o Leroy Merlin ou o Aki. Eu sou muito de inventar, de trabalhar com madeiras… Gosto de fazer as minhas bugigangas para sair um bocadinho do futebol», revela.

À falta disso, Domingos tem ligado mais a televisão para ver filmes, séries e documentários.

«Neste momento sou um cliente fiel da Netflix. Ainda ontem comecei a ver um sobre o Donald Trump. É curioso como essas coisas nos permitem perceber melhor comportamentos que as pessoas hoje têm. Ajudam-nos a refletir em relação a muita coisa», defende.

Solidificar o processo… familiar

Pedro Caixinha deixou o comando técnico do Cruz Azul, no México, em setembro. Ao ser confrontado com o surgimento da pandemia, o treinador afirma ter passado a olhar para este período como «um ano sabático».

E uma das coisas que mais tem aproveitado para explorar são os laços familiares.

«Eu devo tudo ao futebol, mas ele também me tem tirado muitas coisas. Entre elas, a questão familiar. Em 2005, na primeira vez que fui para o estrangeiro, ainda como adjunto do José Peseiro, o meu filho tinha cinco anos e a minha filha tinha dois. Hoje têm 19 e 16 e a minha convivência com eles nunca foi como agora, de 24 horas, sete dias por semana», introduz.

Para isso contribuiu, sobretudo, o aparecimento da pandemia, que obrigou os filhos a recolherem-se em casa, até para os momentos de aulas. Essa obrigação permitiu reforçar uma ligação que, desde 2013, tem sido mantida sempre à distância, uma vez que Caixinha tem trabalhado fora do país desde então.

«Este tempo tem sido muito importante para solidificar essa base familiar mais nuclear, permitindo uma aproximação e maior conhecimento na vida diária», reforça o técnico que tem também aproveitado para voltar aos tachos: «Gosto muito de cozinhar e tenho-o feito mais agora.»

Também José Mota revela que nesta fase de mais tempo livre tem apostado forte na marcação individual… ao pai.

«Antes de mais, todos os dias tenho estado com o meu pai, que tem 83 anos e depende muito de mim para várias tarefas. Mas também tenho tentado voltar a vídeos de jogos e a livros que ficaram a meio», começa por dizer.

Os livros que tem lido, contudo, têm sempre o futebol como marcador.

«Tenho lido, principalmente, livros sobre a liderança, algo que é fundamental para nós. Também tenho visto alguns filmes que se focam nessa vertente. E um pouco de psicologia, que também é muito importante e que nos obriga a pensar», nota.

«Além disso, tenho alguns afazeres porque tenho uma quinta que me ocupa algum tempo. E também tenho feito trabalhos de jardinagem aqui em casa», continua, resumindo: «ocupo muito bem o tempo, refugiando-me nessas tarefas que não consigo fazer quando estou a trabalhar».

Voltar a saborear o passado, ler tendências de olhos no futuro

Afastado dos bancos desde que deixou o Desp. Chaves, em dezembro, o treinador de 56 anos confidencia que  redescobriu uma coleção de que muito se orgulha.

«Fiz uma descoberta que me deu um certo gozo. Fui ao baú tirar todas as camisolas que me ofereceram. E fiquei muito feliz por ver que são tantas as ofertas que me fizeram – porque eu sou tímido e nunca pedi», conta, sorridente.

Além de ter encontrado camisolas de vários jogadores que treinou - «alguns que depois chegaram à seleção e foram para outros patamares do futebol mundial» -, José Mota confessa que nem se lembrava da quantidade de camisolas que guardava.

«Tenho ali uma coleção de camisolas que me deixou muito orgulhoso e, muitas delas, já me tinha esquecido que tinha. Mas lá está: tive tempo e fui ver isso. E agora estou a pensar de que forma as posso tirar do baú e expor para as ver mais assiduamente e para que também as pessoas que vêm cá a casa as possam ver», aponta.

E alguma dessas camisolas tem um sabor mais especial?, questionamos.

«Muitas! Mas encontrei uma do McCarthy que nunca mais me vou esquecer. Ele deu-ma em vésperas de o FC Porto vencer a Champions. Na a última jornada do campeonato, eu treinava o P. Ferreira e fomos jogar ao Dragão. Perdemos 3-1 com um hat-trick do McCarthy. E para surpresa minha, ele foi ao nosso balneário, chamou-me e ofereceu-me a camisola», recorda.

Também Domingos assume, com um sorriso de orgulho na face, que esta fase tem sido fértil no reavivar de memórias.

«Este período tem sido bom para recordar. Tenho visto muitos jogos do passado, tanto do meu tempo de jogador, como de treinador. Isso ajuda, faz-nos pensar um pouco nos bons momentos que vivemos», declara, ele que assume que lhe dá mais gozo ‘voltar’ aos tempos de jogador.

Para lá dos jogos - «com o Werder Bremen, o Feyenoord e também os do Euro96» -, uma das melhores recordações revisitada por Domingos foi outra.

«Estive num programa em que falámos do Bobby Robson. E adorei isso. Porque além do treinador, falámos de um homem com uma forma diferente de ver a vida e de viver. Foi muito bom recordar esse homem que nos marcou a todos», destaca.

Pedro Caixinha, por seu turno, revela que no que diz respeito ao futebol, o tempo tem sido aproveitado para projetar o futuro. Mas também para perceber as mudanças do futebol português nos anos em que tem estado no estrangeiro.

«Temos aproveitado para ‘voltar’ ao futebol português, porque estamos há sete anos fora. E o conhecimento que tínhamos já era distante. Este tempo deu-nos possibilidade de ter um conhecimento muito maior sobre a forma como o futebol português está atualmente, sobre os novos treinadores e as novas ideias», diz.

De olhos no futuro, Caixinha tem também estudado algumas das equipas da moda, ou que têm surpreendido a Europa nos últimos meses.

«Aproveitámos para analisar as novas tendências europeias. Tenho estudado o Leipzig, a Atalanta, o Dortmund, o Man. City, o Liverpool, o próprio Sp. Braga… Por exemplo, a tendência para a utilização de linhas de três [defesas] e as mutações que existem dentro dessa estrutura», explica, notando a importância de ter tempo para o fazer.

«Não era possível fazermos essa análise quando estávamos a trabalhar, porque a nossa preocupação era centrada na nossa equipa e nos adversários que íamos defrontar, por isso, este tempo tem sido bom para isso.

Tempos de partilha entre a classe

Algo que é unanimemente elogiado pelos treinadores com quem falámos é a solidariedade que têm sentido por parte da classe, que tem sabido transformar estes tempos de pandemia numa oportunidade de partilha de conhecimentos.

«Também tenho feito uma reciclagem, com alguns cursos, nomeadamente aqueles que a Associação Nacional de Treinadores tem feito quase diariamente, com vários treinadores», refere José Mota.

Já Domingos, realça a «rotina bonita» que se conseguiu criar neste momento mais complicado.

«Passo a vida a ver outros colegas a falar. Dentro do mal que está a acontecer, este período permite-nos ver e ouvir pessoas ligadas ao futebol, em permanente comunicação, e num ambiente mais descontraído. É uma fase da nossa vida em que todos estamos a partilhar conhecimentos, episódios da nossa vida, a falar de coisas que ainda não tinham sido faladas», elogia o técnico.

A mesma ideia é partilhada por Pedro Caixinha, que nos fala pouco antes de entrar em direto – à distância – como formador numa palestra.

«Tenho assistido a formações, por exemplo, de treinadores principais, como o Luís Castro, o Carlos Carvalhal, na próxima semana haverá uma com o Pedro Martins. Isso dá-nos várias possibilidades de entender como os outros veem o jogo e trabalham. E acho que é importante tirar pontos sobre várias coisas que nos dão ferramentas para alargar horizontes», acredita.

Já no que diz respeito ao futuro, parece existir um misto de confiança e receio. Ainda que as previsões dos técnicos não apontem para muitas mudanças.

«Acredito que vai continuar tudo igual porque todos estão a viver o mesmo problema, não há exceções. Os clubes que estavam satisfeitos com o treinador vão querer continuar com ele, os que já estavam insatisfeitos, vão pensar em mudar», refere Domingos Paciência, deixando um alerta.

«O que tem de haver é bom senso por parte dos clubes. No momento em que tiverem de negociar com um treinador, que haja bom senso e não haja oportunismo perante a situação que o mundo está a viver. Espero que os clubes não sejam oportunistas e que os treinadores sejam bem tratados e que haja honestidade e coerência na contratação ou despedimento de um treinador», apela.

Pedro Caixinha está mais confiante na possibilidade de transformar esta fase complicada num bom momento.

«A história tem-nos ensinado que depois de um momento de crise surgem sempre grandes oportunidades. E neste momento cabe-nos preparar essa possível grande oportunidade. Desde o início da pandemia houve uma diminuição dos contactos exploratórios, mas eles continuam a existir», assegura, detalhando as perspetivas que tinha em carteira.

«Já tínhamos tido alguns contactos com clubes antes desta situação – em processos de entrevistas. Duas delas já numa fase de shortlist, com apenas dois ou três candidatos que foram entrevistados pelos clubes. Outras com um leque mais alargado de opções», revela, garantindo que os contactos em causa surgiram todos do mercado internacional.

«Nenhuma das abordagens foi feita em Portugal. Foram todos do mercado internacional: da Europa, do continente americano e do Médio Oriente», esclarece.

Mas enquanto não se dá o regresso ao trabalho, é tempo para continuar nos afazeres que ficaram por realizar antes.

Porque sem o banco e com o futebol longe da vista, os treinadores aproximaram-se do coração e daquilo que lhes é mais importante.